Boa tarde, quinta-Feira, 25 de Abril de 2024
Casa do Ceará

Imprima




Ouça aqui o Hino do Estado do Ceará



Instituições Parceiras


































:: Jornal Ceará em Brasília


::Odontoclínica
Untitled Document

Agosto 2008

Lição de vida no diálogo dos bilros


Amanhecendo, se insinua pela veneziana entreaberta a claridade, e no aconchego de uma rede, jangada em terra firme, ouvindo o barulho do mar, é tão forte o apelo que você impreterivelmente se levanta, e pelas frestas da janela tenta ver, lá fora, a amplidão, e o dia chegando.

Difícil permanecer no limitado espaço de quatro paredes, que persiste o chamado! Obedecendo a uma necessidade imperiosa você abre a porta, sai, e estarrecido se depara, frente a frente, com uma gigantesca massa líquida que se prolonga até a linha do horizonte! É tão fantástica a sensação de grandeza e magnitude que você hesita, se deve cair de joelhos, se deve rezar ou, em êxtase, ficar imóvel, quieta, ante a beleza que se mostra, plena! Você está no Iguape, uma praia branca, cercada de dunas e de coqueiral, a ouvir, tão só, o rugido do mar, e o silêncio dos seus próprios pensamentos.

Ali, nessa praia branca, mora Liduina, e ali está seu mundo, seu reino, seu castelo. Além do horizonte, além das dunas, que lhe importa o resto? Por acaso cheguei à Liduina, pelos encantos de uma choupana de palha, pau a pique, armada em pleno areal.

Quando sopra o vento, estranho balé, freme a choupana inteira, nas palhas que acenam e, parecem, vão se soltar, secas e finas, entregues à louca brincadeira. Ali encontrei Liduina, sentada no chão, diante da almofada, a jogar de um lado para o outro os bilros de madeira, executando com os dedos um fascinante ritual: se abraçam, se embolam, se pegam, se separam, e vão tecendo a renda, flores e guirlandas, que sem dó os cardeiros aprisionam, no papelão que lhes serve de modelo e guia.

Prosseguiu no trabalho, indiferente, quando me viu, curiosa e aparentemente bisbilhoteira, a indagar da sua vida, do seu mundo. Mas quando sentiu que havia mais solidariedade que bisbilhotice, parou, e com dois dedos de prosa me deu uma lição de como ser feliz no pouco. Percebendo a minha total aquiescência, não se fez de rogada, e sem que precisasse manifestar desejo, convidoume a entrar no seu barraco. Dois cômodos, apenas, Numa rede branca armada, tendo presos os punhos nas estacas que serviam de arrimo, dormia, tranqüilo, o neném, embalado pela brisa da tarde, em doce vai-vem. Usufruía, tão só, o bem maior, a vida, sem nada mais querer. Sem colchão de espuma, sem lençol de linho ou de tergal, sem ursinhos de pelúcia.

Dividia ainda mais o seu despojado mundo, empilhadas as palhas de carnaúba, do chão ao teto, ocupando a metade do quarto! Uma outra dependência seria acrescentada, quando a venda do peixe rendesse um pouco mais, e mais cheio voltasse o samburá da difícil lida de, na jangada, em alto mar, garantir a sobrevivência da família! Pescador, o marido de Liduina, se aventurava naquele imenso e misterioso mundo, dia e noite, muito além da linha do horizonte, terçando linha, anzol e expectativa, seus instrumentos de trabalho, para oferecer na mesa farta dos outros a garoupa, o cação, a cavala, o robalo. Para si mesmo bastava a simples peixada com pirão de farinha que Liduina lhe preparava para levar, já pronta, no farnel de cada jornada.

Sobre a fragilidade de uma jangada, com espaços limitados para ir e vir, o jangadeiro enfrenta horas e horas de um labor sem descanso, todo feito de incertezas e blandícias, na luta entre o peixe e o homem, onde a sedução da isca nem sempre traz o resultado esperado. Ainda assim ele sonha, ele deseja, ele ama, ele espera, e traz, permanente no coração, renovadas esperanças de que o melhor ainda está por vir.

Na praia, uma pequena multidão, ansiosa, o aguarda, para regatear o fruto do seu trabalho, seguindo a lei da vantagem, sem nem de longe vislumbrar o quanto de esforço e de energia dispendida, na tocaia constante, vai ali concentrada, no peixe que vai sendo atirado à areia, no pregão de habilidades da oferta e da procura.

No pouco, apurado, estão o leite do menino, a farinha do pirão, o chitão do vestido, a linha para os bilros. E onde não pode faltar, a pinga para temperar as forças e colorir de ilusões as noites em terra firme.

Sob o compasso leve da dança dos bilros, na trança programada para tecer uma flor, Liduina me mostrou essa nesga de vida, feita de labor e obstinaão, com o testemunho persistente dos sussurros do mar.



Untitled Document

Regina Stella S. Quintas
Jornalista e Escritora
studartquintas@hotmail.com

                                            
:: Outras edições ::

> 2015

– Outubro
Camaleões à solta

–Setembro
Um instante de Solidariedade

> 2015

– Novembro
Coronel Chichio

– Outubro
Uma ponte...

– Setembro
Um verbo para o encantamento

– Agosto
Há vida lá fora...

> 2014

– Setembro
Seca: a tragédia se repete
– Agosto
Seca: a tragédia se repete
– Julho
Gente brava
– Junho
Dia da Alegria
– Maio
Precioso bem
– Abril
Aquele velho “OSCAR”
– Março
Estórias de sertão, estórias de cangaço
– Fevereiro
Recado para quem sai
– Janeiro
Rota para a vida

> 2013

– Dezembro
Na festa do tempo, um brinde à vida
– Novembro
Em velha trova do tempo. Trinta dias tem setembro. Abril, junho, novembro...
– Outubro
O Gênio e o Homem
– Agosto
O Gênio e o Homem
– Julho
Um presente de vida a Mandela!
– Junho
Dia da Alegria
– Maio
Precioso bem
– Abril
Aquele velho “OSCAR”
– Março
Estórias de sertão, estórias de cangaço
– Fevereiro
Recado para quem sai
– Janeiro
Rota para a vida

> 2012

– Dezembro
As lições de amor e ternura fazem eterno o Natal
– Novembro
As luzes estão acesas
– Outubro
Amarga ironia
– Setembro
O trono vazio
– Agosto
A última trincheira
– Julho
Parece que foi ontem...
– Junho
Atores de todos os tempos
– Maio
Seca: a tragédia se repete
– Abril
Imaginação ou realidade?
– Março
Um Século de Sabedoria
– Fevereiro
Trágedia e Carnaval

> 2011

– Novembro
Trilhas da vida
– Setembro
Um mercenário a caminho
– Agosto
Usar sem abusar
– Julho
Como as aves do céu
– Maio
Quem se lembra de Chernobil?
– Junho
Sino, coração da aldeia...
– Maio
Maio, cada vez menos Mês de Maria, está indo embora...
– Abril
Bonn, Bonn
– Fevereiro
Depois da festa...
– Janeiro
Um brinde ao Novo Ano

> 2010

– Dezembro
Nos limites de um presente,um presente sem limites
– Novembro
Homem total
– Outubro
Estórias de sertão, estórias de cangaço
– Setembro
Um tempo que se perdeu
– Agosto
Império do Medo
– Julho
Acenos de Esperança
– Junho
Maio, cada vez menos Mês de Maria, está indo embora...
– Maio
Poema Impossível
– Março
Numa tarde de verão
–Fevereiro
Caminhos de ontem
– Janeiro
Muros de Argila

> 2009

– Dezembro
Um Brinde à Vida
– Novembro
A vez da vida
– Outubro
Gente brava
– Setembro
Gente brava
– Agosto
Lição de vida no diálogo dos bilros
– Julho
Camaleões à solta
– Junho
Síndrome de papel carbono
– Maio
Um tempo que se perdeu


:: Veja Também ::

Blog do Ayrton Rocha
Blog do Edmilson Caminha
Blog do Presidente
Humor Negro & Branco Humor
Fernando Gurgel Filho
JB Serra e Gurgel
José Colombo de Souza Filho
José Jezer de Oliveira
Luciano Barreira
Lustosa da Costa
Regina Stella
Wilson Ibiapina
















SGAN Quadra 910 Conjunto F Asa Norte | Brasília-DF | CEP 70.790-100 | Fone: 3533-3800 | Whatsapp 61 995643484
E-mail: casadoceara@casadoceara.org.br
- Copyright@ - 2006/2007 - CASA DO CEARÁ EM BRASÍLIA -