Abril 2010
Raimundo Borges morreu enquanto estava vivo
Meu pai costumava dizer: “Quero morrer enquanto estou vivo”. Para ele, caducando ou semimorto em cima de uma cama em estado de vida vegetativa já não merece ser contado entre os vivos. Deus permitiu que assim fosse.
Morreu lúcido, a caminho dos 98 anos, apenas com discretos lapsos de memória.
O advogado, escritor e professor Raimundo de Oliveira Borges, uma das expressões de maior grandeza do Direito e da intelectualidade caririense, falecido em fins de janeiro, na cidade do Crato, aos 103 anos, foi um exemplo dos que morrem enquanto estão vivos. Estava no gozo pleno das faculdades mentais e acabara de publicar o seu 24º livro. “A cabeça está boa, as pernas é que não ajudam”, dizia-me ele, em maio de 2008, ao introduzir-me no auditório do Instituto Cultural do Cariri, no Crato, juntamente com o ex-prefeito Humberto Macário de Brito, por ocasião da solenidade de posse como sócio acadêmico da instituição, na qual passei a ocupar a cadeira Colombo de Sousa.
Advogado de grande prestígio e conceito em todo o Cariri e regiões limítrofes, respeitado não só pela sua larga cultura jurídica, mas, acima de tudo, por uma vida de honradez, demonstrada nas mais diversas áreas nas quais atuou, como cidadão, como advogado, professor, intelectual e, até mesmo, na militância política exercida de modo sereno e ético. Ler e escrever foi um hábito que cultivou desde a infância e que o acompanhou em todo o curso e instantes de sua longa existência, durante a qual desenvolveu fecunda e invejável atividade intelectual, não parando um só momento de pesquisar e produzir, destacando-se versátil obreiro da cultura. Prova disso, os livros publicados, abordando tanto assuntos de sua área profissional, o Direito, como temas outros relacionados à história e à cultura da região do Cariri, que exerciam sobre ele um fascínio fora do comum, movido pelo profundo sentimento telúrico que o animava. Em um dos seus últimos livros, publicado no ano passado e a que deu o título “Os Meus Mortos”, traçou um apanhado histórico-biográfico de numerosas figuras com as quais conviveu e que já partiram desta para a outra vida. Ao comemorar o seu centésimo aniversário natalício, em 2007, publicou um alentado volume de quase 500 páginas intitulado Reminiscências: o meu itinerário. Na ocasião, fez questão de reunir em torno de si, além dos filhos, netos, bisnetos e amigos, mais de uma dezena de cratenses que, como ele, haviam atingido a idade centenária. Entre eles estava o livreiro Ramiro Maia, falecido no ano passado aos 102 anos, no Crato.’
(...)
Raimundo Borges nasceu em São Pedro do Cariri. Aos 21 anos, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia. No 2º ano, por motivo de saúde, abandonou o curso. Retornou à cidade natal, estabelecendo-se com uma pequena farmácia, até que um dia alguém passando por ele perguntou: “Como vão as pílulas?”. A pergunta mexeu com os brios de quem sempre almejou um diploma de curso superior. Veio à lembrança o fato de os colegas de vestibular já estarem prestes a concluir o curso de medicina e ele ali, “na cidadezinha, a marcar passo vendendo pílulas e xaropes”. Casado de pouco, pensou cursar a Faculdade de Direito em Fortaleza, para o que contou com integral apoio da esposa, que se dispôs ficar à frente da farmácia sob orientação de um irmão do marido. A festa de formatura se deu em 1937 e Borges foi escolhido pelos colegas orador da Turma, pela sua cultura, eloqüência e versatilidade. Muitos dos que com ele se formaram fizeram figura no cenário político, na magistratura, no magistério, nas letras e na advocacia. Entre eles, os irmãos Claudio e Fran Martins, Wilson Gonçalves, Colombo de Sousa, José Cardoso de Alencar, Américo Barreira, Flávio Marcílio, Walter Sá Cavalcante e Lauro Maia, para citar apenas estes. Borges optou por permanecer no Cariri, instalando no Crato escritório de advocacia. Em pouco tempo era um dos advogados mais requisitados da Região. Orador primoroso, intelectual sério, professor respeitável, foi o fundador da Faculdade de Direito do Crato, integrada hoje à Universidade Regional do Cariri, e da qual foi professor e diretor.
Cidadão de reconhecidas virtudes morais, sua morte provocou um vazio profundo na vida cultural e social do Cariri.
(*) José Jezer de Oliveira (Crato), jornalista