Fevereiro 2012
Trágedia e Carnaval
No rosto o desalento, a convicção absoluta da própria fraqueza , a inutilidade da revolta, foi o que vi estampado no pobre homem que a televisão mostrou, entre os milhares que a enchentes destroçaram a vida. Personificada, a aceitação do irremediável.
E imaginei, em extensão e profundidade, a calamidade que desabou sobre os seus dias, as águas do rio subindo, a ameaça descendo e arreganhando-lhe a face, fantasma do mal. Junto, a esperança lhe acenando uma nesga de azul, promessa de bem.
Enquanto pode acreditar, armadilha do coração, o homem se agarra ao mínimo que resta, um nada, mas que há de representar ainda uma possibilidade, e só quando tudo se foi, no roldão da catástrofe, é que se rende à evidência e se entrega, vencido. Tanto para o bem do coração quanto para o bem das coisas materiais.Enquanto as chuvas persistiam, inundando, transformando em lama a plantação, a terra, agigantava-se a expectativa, de mãos dadas com o medo, e escondida, ainda gemia a esperança, que afinal morreu. As águas não pararam, e a desolação subiu à cumeeiras das casas, desnudas, pobres, carentes. No tempo que ainda restou, salvou-se o que se pôde. E a vida. Tudo mais se perdeu na enxurrada.
Estradas se fecharam, barreiras soterraram adultos, crianças, velhos e moços, pontes desabaram, e foi dado o alerta para que se abandonasse o lugar, a terra. Mortos, desabrigados, mil, milhares, formam a dolorosa estatística de que se tem notícia.
Por mais que se pinte em negro a calamidade, ainda não se diz todo o sofrimento. As lavouras, de milho, de arroz, de feijão, sobrevivência para o ano inteiro, estão perdidas. Escolas, igrejas, galpões, transformados em triste hospedaria, atendem ao desamparo e ao infortúnio. E a tristeza, ali, se debruça para chorar o hoje e o amanhã, mais negro e mais ameaçador.
Contradição terrível, agora é fevereiro, e o Carnaval já manda lembranças, com suas miçangas seus paetês, seu ritmo, sua alucinação. E as ruas, nas cidades, já mandam seus recados, nos panfletos ostentando fantasias, tecidos coloridos para a festa, e já se esbanja dinheiro, que a forma, a cor e a dança estão em jogo para o prêmio que a duras penas se disputa.
O país inteiro para, na tradição, que nem a urgência dos problemas inadiáveis consegue suster e impedir. E já se exaure, nas capitais, toda uma multidão, no gozo desenfreado, n a loucura do ritmo que instiga, excita, estimula e enlouquece.
Será tão simples esquecer a dor alheia, tão facilmente como uma porta que se fecha, uma página de livro que se leu, uma televisão que se desligou? Entre os gritos da alegria mascarada,entre a farsa da festa, será que a alma não se tolda na lembrança dos irmãos que estão soluçando espicaçados pelo sofrimento? A solidariedade bem podia se fazer presente, lá onde as enchentes chegaram, com um pouco dos milhões que ora se gastam, nos cetins e nas sedas, nos confetes, nas serpentinas, vivendo a colombina, o arlequim, o pierrot... outra vez enganado, outra vez traído.
Quando as águas baixarem e atingirem o nível natural, quando as estradas secarem, o pó dos caminhos voltar, levantando a saia do chão, e o ciclo da vida recomeçar, outra vez o preparo da terra, outra vez a plantação, o sofrimento já não vai clamar Terrível, na alma, a dor do silêncioEntão, é o gemido silencioso, quieto, angustiante, de quem perdeu mais que arroz e feijão, mais que cama e mesa, mais que madeira e chão. Perdeu vida, nas horas que não voltam, no suor que é sangue e se foi na enxurrada, no trabalho que não teve lucro nem paga, nos dias e noites de aflição, angustia e desespero, coração e alma se esvaindo. Se a tragédia fosse nossa,cada um de nós sentindo, na pele, essa dor, invertidos os papeis, uma vida inteira jogada fora, inútil , perdida, tudo para recomeçar, na estaca zero, como nos comoveríamos ante a solidariedade...
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora