Julho 2009
Acenos de Esperança
Guardo, nítida, na memória, a visita a Panmujon, há alguns anos. Linha divisória entre a Coréia do Norte e a Coréia do Sul, vivia a península asiática em permanente tensão, na expectativa de um confronto iminente. Cheia de medo, o coração batendo acelerado, assinei, na zona desmilitarizada, o documento de que ninguém assumiria a responsabilidade por qualquer ato, algum fato, que pudesse ameaçar a minha integridade e que estava ali, por livre e espontânea vontade.
Atenta ao menor ruído, os olhos percorrendo, rápido de um lado a outro a estrada, aguçada a visão, buscando possíveis vultos se esgueirando por entre o arvoredo, custava-me acreditar na paisagem que eu via, os fios de arame farpado enrolados ao lado do caminho, formando barreiras e grandes pilhas de saco de areia, como trincheiras em tempo de guerra. Em Panmunjon, separando as duas Coréias, apenas um meio de concreto correndo no chão, aparentemente, mas era conhecimento do mundo inteiro que uma fronteira fortemente militarizada dividia o páis em dois, impedindo todo e qualquer contato, toda e qualquer comunicação entre norte e sul.
Eu podia ver algumas edificações um pouco distantes, mais no alto, onde pelas minúsculas janelas, de prontidão, vigias montavam guarda, ostensivamente armados. A minha frente, a poucos metros, lembro-me da fisionomia do soldado norte-coreano, visivelmente hostil a nos fitar, de metralhadora em punho, atento a um gesto nosso que pudesse ser considerado agressivo.
Tínhamos sido prevenidos de que não devíamos sorrir, nem acenar, não expressar nenhum gesto que demonstrasse rancor ou simpatia. Para evitar qualquer animosidade deveríamos ignorar, por completo, a sua existência, a sua presença, a sua atitude hostil e a sua arma voltada para nós, como se fôssemos um provável alvo.
A cena parecia de ficção, um país dividido, inimigos se olhando acintosamente, e nós, do Ocidente, simplesmente presenciando a cena. Se eu desse um passo à frente, estaria invadindo o território inimigo, a Coréia do Norte, com todas as implicações que o gesto poderia acarretar.
Alguns meses antes, na zona desmilitarizada, norte-coreanos tinham assassinado a pauladas, ali perto, dois oficiais americanos que comandavam uma patrulha da força de paz da ONU que cumpriam ordens de podar os galhos de uma árvore, em lugar estratégico. Olhando o local da tragédia, medrosa, eu supunha estar sendo observada por mil olhos invisíveis que à distância me espreitavam. Convencera-me de que, embora a poucos quilômetros de Seul, a capital, eu pisava n um dos pontos mais perigosos do mundo!
Quando a guerra entre a Coréia do Norte e a Coréia do Sul que durou três anos, de 1950 a 1953, acabou, dividindo definitivamente o país, e Panmunjon se tornou a zona desmilitarizada, a luta teve fim, mas a tragédia persistiu, com a dolorosa separação de pais, filhos, irmãos, amigos, famílias inteira proibidas de se encontrarem, de se visitarem, de se corresponderem, inteiramente destroçadas.
Convivi com os sul-coreanos, afáveis, cordiais, vi pais, mães, numa manhã de domingo, num parque muito arborizado, lindo, cercados de crianças comprando sorvete, guloseimas, em grande euforia, adolescentes, jovens usufruindo um dia luminoso de outono. O universitário com quem conversei, tão bem falando o português que me surpreendeu, sabia cantar várias músicas de Roberto Carlos, também romântico e apaixonado. E numa escalada ao Mont Sorak, belíssimo, cheio de templos milenares e lugares históricos, vi dezenas de jovens caminhando de braços dados, cheios de entusiasmo, cantando uma linda melodia. Curiosa, indaguei do sentido dos versos, e emocionada, soube que exaltavam a esperança, de num dia no futuro que certamente haveria de chegar, poderiam como amigos e irmãos, coreanos do norte, coreanos do sul se darem as mãos, num tempo de paz, sem tensão e sem medo.
Mais de 50 anos de separação, de dor e ansiedade, muitos já devem ter morrido sem poder realizar o sonho de rever e abraçar os eleitos do coração. Mas, no Dia da Libertação, num 13 de agosto que já vai longe, para alguns teve vez o esperado futuro. Foi permitido que duzentos coreanos, cem de cada Coréia, pudessem atravessar a fronteira e tentar rever seus familiares durante quatro dias! Depois de anos de saudade, as cenas foram culminantes, tamanha a emoção. Foram momentos de tensão, de medo e pranto, de alegria e ansiedade. A expectativa buscando nos rostos marcados, e então, em alguns, cheios de rugas, envelhecidos, o filho que era pequenino, a mãe que conhecerá tão jovem! O abraço era uma contorção de amor, uma explosão de ternura, e entre a felicidade e o receio nem sabiam se riam ou se choravam!Soluçavam, crispando as mãos, apertando o rosto amado, entre palavras de amor, proferidas desordenadamente.
Neste conturbado mundo de sofrimento e dor, tantas as ameaças, tantas as tragédias, permita Deus que ainda seja possível um reencontro. Milagres ainda existem, e, quem sabe, possam alguns ainda ganhar, não apenas instantes de felicidade, mas que sejam agraciados com a liberdade, com o direito de ir e vir, e de rever pessoas amadas. O impossível não existe.
Que se erga a bandeira branca de paz para toda a humanidade, como um grito gigantesco de esperança.
(*) Regina Stela (Fortaleza), jornalista e escritora