Agosto 2014
Seca: a tragédia se repete
Assisti a euforia da partida, a expectativa entre a proeza e o medo, as risadas de quem se propõe a uma travessura, o gosto da aventura.
Diante da imensa massa líquida, ao se quebrar em gigantescas ondas se desfazendo em espuma rendada à beira da praia, o grupo de turistas discutia, brincava, posava para fotografias, aguardando a hora de Regina Stella (*)
“_Setenta e sete! Setenta e sete!” Gritavam-lhe os irmãos mais velhos, oito, dez anos, doze, num tom de mofa e franca hostilidade quando querendo participar da brincadeira atrapalhava o jogo, a corrida, a subida nas mangueiras. Pura implicância dos manos a exclamação, dita sempre aos gritos, com um ar de zombaria, agressão que tentava revidar, protestando junto ao pai, à mãe, o insulto recebido.Única menina da casa, recebia dos pais toda proteção e acolhida mas sabia que o apelido era uma ofensa dos irmãos, que se afastavam , rindo às escondidas, fazendo trejeitos e caretas. Enraivecida, respondia a provocação com uma infindável lista de apelidos que sabia de cor, que os instigava, irritava também, verdadeira guerra: bode louro! Tronco de amarrar onça, samangolé, potó, tocambel!
Magricela, cambitos finos, cabelo escorrido, desenxabida, esganiçada, só muito depois veio a compreender, com certo humor, o apelido que tanto lhe pesara na infância. A seca de 77, no Ceará, fora a mais terrível, a mais desoladora, a mais cruel entre todas as secas.
Ah! A horrenda visão da caatinga crestada, os garranchos retorcidos e secos, o chão calcinado, esturricado, semi-enterrados os esqueletos do gado, morto de fome, de sede, e sob um sol escaldante, os passos lentos, pesados dos retirantes, e a conformação do nordestino ante a tragédia, numa luta insana para sobreviver!
“ A secca perante a Sciência e a religião” Pelo vigário da Cachoeira, Padre Bellarmino José de Souza. Fortaleza.
Typ.Constitucional-Rua Formosa número 30.l880
Aos meus paroquianos em geral- três longos annos tenho demorado entre vós, ó meus bons amigos, a contar do dia l2 de janeiro de 1877 a l2 de janeiro de 1880, tempo verdadeiramente cruel e fatídico para mim e para vós. Como que a Providencia Divina collo cando-me no meio de vós, numa epocha de tantos e tão terríveis infortúnios,quis, pela prova do mão tempo, estreitar melhor os laços que prendem o Pastor a seu rebanho. N`esses três annos tenho sido vosso companheiro de martyrio, vosso irmão pela dor, e a consciência não me accusa de vos ter abandonado um instante siquer no meio de tantas e tão dolorosas privações. Coube-me por partilha a epocha do terror- e do pranto-, da desolação e da morte. Tenho vivido no meio de vós triste como a estatua da dor! Este sol de fogo, este Céo inclemente, esta natureza-sepulcro,esses campos desertos, esses esqueletos de árvores,essas ossadas humanas,(meu Deus), tudo me inspirava terror, amargura, tristeza e desolação!
Villa da Cachoeira,12 de janeiro de 1880”
Passados mais de cem anos, o cenário é o mesmo, os personagens são chamados , de novo, à cena, a marcação é idêntica, a tragédia se repete, negra, perversa. Findou-se o Império, quando D. Pedro II proclamou que venderia as jóias da coroa para que nenhum nordestino morresse mais de fome. Veio a República, sucedendo-se no mando do país presidentes de todas as origens, inclusive nordestinos, e a despeito dos discursos retumbantes, das teses de doutorado, dos planos de desenvolvimento econômico e social, da distribuição das cestas básicas, da abertura de frentes de emergência, o problema permanece sem solução. Os mesmos programas de ajuda, o abastecimento d’agua pelos carros-pipas, as construções de cacimbões, de pequenas barragens. E ainda, em penosa peregrinação, terrível êxodo, pelas estradas, quilômetros de exaustiva caminhada para apanhar uma lata d’água!
Ah! Só mesmo o nordestino conhece a opressão no peito, a sensação de desgraça iminente,quando, acentuada a estiagem, o mês de março começa, e a desolação se assenhora, sem nenhuma esperança de chuva! Paira no ar um prenuncio de flagelo, e se tem a impressão de que, aterrada, estática, transida de horror a atmosfera não circula, aquietados os ventos, e tão só o sol escaldante e o calor sufocante são testemunhas desse pânico silencioso e secreto que se apossa de cada coração, ante a calamidade prestes a desabar.
Agora se mobilizam todos, com presteza...E se retrata, gigantesca, a velha industria. Sabem todos que a tragédia da seca não se resolve com planos de emergência e com paternalismo! Numa terra calcinada,sem água, sem lavoura, sem colheita, transformados os açudes em imensas crateras!
E já se fez Itaipu! E já se construiu Tucuruí!
Num famoso discurso, como senador do Império, o Padre Francisco de Brito Guerra dizia que “quando as águas do Nordeste deixarem de correr para o mar, por encontrarem açudes e barragens que as retenham, os nordestinos deixarão de correr para o Sul, expulsos pela seca”.
As águas do Nordeste ainda correm para o mar, e os nordestinos ainda continuam a sofrer, humilhados, aniquilados, pela seca!
Agora, são mais de cem, os municípios em emergência, no “Ceará, velho de guerra”, como se dizia antigamente! E, já tão habituados, todos, com o sol escaldante, a terra rachada, empedrada, os córregos esturricados, que já não se alardeia o mal, e só num cantinho dos jornais se lê a notícia, espremida, encolhida, quase pedindo desculpa! Mas aquela figura esquálida, no rosto a palidez de cera, a trouxa de roupa na cabeça, todos reconhecem. Permita Deus, não comece a procissão do retirante...Até quando, Senhor?
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora ganhar o mar, na tosca jangada.