Setembro 2017
Um instante de Solidariedade
Era uma interminável fila colorida. Estampado em cada
rosto o desencanto, o cabelo em Desalinho, áspera a pele,
via-se, duramente ao sol, ao vento, ao frio. Uma procissão
de necessidades, vestida de cores vivas, aguardando a vez,
de sacola à mão.
O ano inteiro esperaram aquela hora, juntando dia a dia
as minguadas moedas que avaramente tinham guardado da
lavagem da roupa, da faxina nas casas ricas. E ali estavam,
em expectativa, às duas da tarde, o sol a pino, esperando o
instante de comprar.
Momentaneamente ficaram relegados o trabalho, a roupa
da freguesa, o barraco, para poderem chegar à hora marcada
e ter acesso à “sala mágica” onde por um preço simbólico,
poderiam comprar a blusa da menina, o cobertor do menino,
a sandália do “mais pequeno”. E quanto mais de” necessida-
des” quisesse, que o Natal já vinha, e precisava guardar para
a surpresa da “ Noite Feliz”. Lá estavam empilhadas, em
profusão, calças jeans, blusinhas de verão, casaquinhos de
frio, brinquedos, e eu vi o brilho dos olhos em cada rosto, na
expectativa do preço, quase de graça. Era uma oportunidade
única que não se podia perder!
Atendendo, sugerindo ora o agasalho, ora o cobertor,
a panela de pressão, o balde colorido, um grupo solícito
liderando a festa, fazia daquele pequeno comércio um fato
extraordinário, totalmente envolvidas. E eu me dei conta de
que na descrença que grassa mundo afora, poucos atentam
para o valor de um trabalho como aquele, feito sem alarde.
no anonimato, sem a preocupação de impressionar ou rece-
ber retribuição. Aparentemente desprovido de importância
ou significação. Ali, como em outros recantos desse velho
mundo, um esforço silencioso e voluntário se realiza, doação
de tempo, doação de ajudar, generosidade que extravasa e
chega a outrem. Alternando os dias, aquelas senhoras deixam
o conforto da bonita casa ou do apartamento e vão para onde
a necessidade chama. Umas, ensinam corte e costura num
barracão ao lado da igrejinha, outras dão noções de higiene,
outras ensinam tricô. O doutor que eu conheci clinicando nos
melhores hospitais, ali, aposentado, deixou a clientela rica
para atender aos que não podem pagar. Consultando aquela
gente humilde, distribui gratuitamente os medicamentos,
como um novo Lucas,” médico de homens e de almas”,
minorando o sofrimento alheio. Com prodigalidade abre as
comportas do coração e se propõe a uma tarefa que não lhe dá
lucro, nem sucesso. Apenas a certeza de responder ao apelo
e ajudar. De não se omitir, e com a capacidade que possui,
dividir com aquele que pouco recebeu mas que é filho do
mesmo Pai, com igual direito à dignidade.
Diante dessa avalanche de incoerências que se alastra,
uma íntima satisfação se associa à constatação de que
alguns, voluntariamente, sem visar retribuição, dão de si,
tempo, preocupação, objetivo, e transformam a alegria
alheia na sua própria alegria, e ao suprir as necessidades
alheias, transformam a satisfação dos outros na sua ´própria
realização interior.
Rico de valores, rico de conteúdo, amplo numa visão
espiritualista, aquele grupo que eu vi, atendendo, solícito,
os mais carentes, me encheu de esperança. Tão pequeno,
contudo, na imensidão de necessidades, nesse universo de
desigualdades!
Estou certa de que é por aquela generosidade, por esses
que abrem as comportas do coração, e deixam extravasar o
bem, que ainda não desabou o céu, não ressecou a terra e se
mantem ainda de pé o mundo.
(*)Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora.