Outubro 2009
Estórias de sertão, estórias de cangaço
Com o olhar perdido, evocando reminiscências, ela contava, sob o olhar fascinado dos n etos, que era tempo de férias quando se juntaram no pátio da Casa Grande mais de vinte cavaleiros, rapazes e moças, para uma viagem de léguas. Grande o alvoroço nos preparativos da aventura, com ansiedade aguardavam o instante da partida, inseguros os iniciantes na arte de cavalgar, a pedir explicações aos veteranos, habituados nas andanças pelas poeirentas estradas do Nordeste. Aos mais tensos e medrosos foram designados os animais mais lentos e mansos, enquanto os mais excitados e ariscos foram dados aos cavaleiros acostumados a longas galopadas. Treinados uns, desajeitados outros, foram um a um montando o seu cavalo, e ela ficou de fora, desapontada! Faltava um animal, e ela, tristemente, já se preparava para assistir a debandada festiva, quando um amigo da família, em visita, ofereceu-lhe belo animal, com uma condição. Tinha que montar muito bem. O animal, arisco em demasia, ele dizia, era um puro sangue, acostumado a disputar nas pistas os primeiros lugares! Não poderia o cavaleiro, em passeio, dar tréguas no manejo das rédeas. Firmeza no pulso, segurando-as sem favorecer o animal, não deixando-o avançar, livremente. Convencida de que cavalgava com mestria, era a melhor de todos, não hesitou, rapidamente se sentou à sela e pôs-se a caminho, se juntando aos demais. Boa amazona, habituada a montar, logo esqueceu das recomendações, afrouxou as rédeas, deixou o animal um pouco mais solto, e de leve no galope. Foi quando dois lhe passaram à frente, e mais velozes, se distanciaram. Num segundo, sem que pudesse conter as rédeas e puxar o freio, ela se viu à mercê do animal, em desabalada carreira ultrapassando os outros, e galopando a toda, sem parar! Tomara o freio nos dentes!
Costume dos velhos tempos, montada de lado, tentou a custo se manter no silhão, sentindo que já não tinha o comando e nem dominava o animal. Julgou-se perdida, deixando para trás, amigos, árvores, cercas, estrada!
De repente irrompe, nem sabe de onde, um vulto, e ela vê que do alto da ribanceira, n um salto se joga à frente, tentando segurar as rédeas e o freio do animal que recua, corcoveia e empina! A custo, vencido e dominado!
Trêmula, quase sem poder falar, ela vê, se refazendo do susto, que ele traz à altura do peito, do pescoço à cintura, larga cartucheira, e pelo aspecto reconhece, de imediato, o famoso personagem pertencente ao bando do Lampião! Em visita aos parentes, andava pelas redondezas da Serra de Guaramiranga! Não podia, ali, deixar transparecer o seu pavor, e desejo de fugir! Restava-lhe disfarçar o medo e esperar pelos outros. Demora de uma eternidade, tanta a agonia.
Grande foi o constrangimento do dono das terras, chamado para atender a emergência, ao reconhecer no cangaceiro, filho do seu caseiro, o salvador da sobrinha mais querida. Um agradecimento formal foi –lhe feito, com promessa de gratificação, que ele, cheio de brio, recusou. E a viagem prosseguiu, plena de excitação, e sem mais sobressaltos, que já bastava a intervenção de um homem do cangaço.
De certo modo, verdade, devo-lhe muito.Salvou a vida de minha mãe, ainda adolescente. E , certamente, favoreceu também a minha vida. Mas, longe a idéia de lhe levantar em praça pública uma estátua, como pretenderam , há tempos, os moradores de Serra Talhada, pequeno município onde nasceu Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião!Em sua homenagem pretendiam alguns erguer uma estátua de quarenta metros, sob o pretexto de que Lampião é história e cultura, e merece homenagens, além de levar turistas e visitantes à cidade.Protestando, o prefeito alardeava a sua pretensão de investir em áreas mais prioritárias, educação, saneamento, sob o aplauso dos mais jovens que divulgavam as perversidades do Lampião e seus asseclas.Divididas as opiniões em Serra Talhada, a alguns quilômetros do Recife, o cangaceiro foi figura de destaque, polêmica cerrada entre a população. Das divergências, quem ganhou quem perdeu, nada sei .
Houve um tempo em que as homenagens eram feitas aos heróis, aos cientistas, aos poetas, homens que acrescentavam ao mundo com o seu talento e a sua capacidade, abnegação e desprendimento. Nos tempos que correm, numa cidade do interior se faz um plebiscito para se aprovar a construção de uma estátua a um cangaceiro, bandoleiro do sertão que passava incendiando, pilhando, destroçando fazendas, plantações, suscitando pavor! Uma estátua a um homem do cangaço!
Triste sinal dos tempos!
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora.