Outubro 2013
Acenos de esperança
Guardo, nítida, na memória, a visita a Panmujon, há alguns anos.Linha divisória entre a Coréia do Norte e a Coréia do Sul, vivia apenínsula asiática em permanente tensão, na expectativa de um confrontoiminente. Cheia de medo, o coração batendo acelerado, assinei,na zona desmilitarizada, um.documento de que ninguém assumiria aresponsabilidade por qualquer ato,qualquer fato que pudesse ameaçara minha integridade.Estava ali, por livre e espontânea vontade.
Atenta ao menor ruído, os olhos percorrendo, rápido de um lado aoutro a estrada, aguçada a visão, buscando possíveis vultos se esgueirandopor entre o arvoredo, custava-me acreditar na paisagem que euvia, fios de arame farpado enrolados ao lado do caminho, formandobarreiras, e pilhas de saco de areia, como trincheiras em tempo deguerra.EmPanmunjon, separando as duas Coréias, apenas um meio fiode concreto correndo no chão, aparentemente, mas era conhecimentodo mundo inteiro que uma fronteira fortemente militarizada dividiao país em dois, impedindo todo e qualquer contato, toda e qualquercomunicação entre norte e sul.
Eu podia ver algumas edificações um pouco distante, mais noalto, onde pelas minúsculas janelas, de prontidão, vigias montavamguarda, ostensivamente armados.Á minha frente, a poucos metros,lembro-me da fisionomia do soldado norte-coreano, visivelmentehostil a nos fitar, de metralhadora em punho, atento a um gesto nossoque pudesse ser considerado agressivo.
Tínhamos sido prevenidos de que não devíamos sorrir, nem acenar,não expressar nenhum gesto que demonstrasse rancor ou simpatia.Para evitar qualquer animosidade deveríamos ignorar, por completo, asua existência, a sua presença, a sua atitude hostil e a sua arma voltadapara nós, como se fôssemos um provável alvo.
A cena parecia de ficção, um país dividido, inimigos se olhandoacintosamente, e nós, do Ocidente, simplesmente presenciando a cena.Se eu desse um passo à frente, estaria invadindo o território inimigo,a Coréia do Norte, com todas as implicações que o gesto poderiaacarretar. Alguns meses antes, na zona desmilitarizada, norte-coreanostinham assassinado a pauladas, ali perto, dois oficiais americanos quecomandavam uma patrulha da força de paz da ONU e que cumpriamordens de podar os galhos de uma árvore, em lugar estratégico. Olhandoo local da tragédia, medrosa, eu supunha estar sendo observada pormil olhos, invisíveis, que à distância me espreitavam. Convencera-mede que, embora a poucos quilômetros de Seul, a capital, eu pisava umdos pontos mais perigosos do mundo!
Quando a guerra entre a Coréia do Norte e a Coréia do Sul quedurou tres anos, de 1950 a 1953, acabou, dividindo definitivamenteo país, e Panmunjon se tornou a zona desmilitarizada, a luta teve fim,mas a tragédia persistiu,com a dolorosa separação de pais, filhos,irmãos, amigos, famílias inteiras proibidas de se encontrarem, de sevisitarem, de se corresponderem, inteiramente destroçadas.
Convivi com os sul-coreanos, afáveis, cordiais, vi pais, mães, numamanhã de domingo, num parque muito arborizado, lindo, cercadosde crianças, comprando sorvete, guloseimas, em grande euforia,adolescentes, jovens usufruindo de um dia luminoso de outono . Ouniversitário com quem conversei, tão bem falando um portuguêsque me surpreendeu, sabia cantar várias músicas de Roberto Carlos,também romântico e apaixonado. E numa escalada ao MontSorak,belíssimo, cheio de templos milenares e lugares históricos, vi dezenasde jovens caminhando de braços dados , cheios de entusiasmo,cantando linda melodia.Curiosa, indaguei do sentido dos versos, eemocionada, soube que exaltavam a esperança , de num dia no futuroque certamente haveria de chegar, poderiam como amigos e irmãos,coreanos do norte, coreanos do sul se darem as mãos, num tempo depaz, sem tensão e sem medo.
Tantos anos de separação, de dor e ansiedade, muitos devem termorrido sem realizar o sonho de rever e abraçar os eleitos do coração.Mas no Dia da Libertação, num 13 de agosto que já vai longe, para algunsteve vez o esperado futuro.Foi permitido que duzentos coreanos,cem de cada Coréia, pudessem atravessar a fronteira e tentar rever seusfamiliares durante alguns dias ! Depois de anos de saudade, as cenasforam culminantes, tamanha a emoção.Entre momentos de tensão,de medo e pranto, a alegria do encontro. A expectativa buscando nosrostos marcados, alguns já cheios de rugas, envelhecidos, o filho queera pequenino, a mãe que conhecera tão jovem! O abraço era umacontorção de amor, uma explosão de ternura, e entre a felicidade e oreceio nem sabiam se riam ou se choravam!Soluçavam, crispando asmãos, apertando o rosto amado, entre palavras de amor, proferidasdesordenadamente.
Neste conturbado mundo de sofrimento e dor, tantas as ameaças,tantas as tragédias, permita Deus ainda seja possível um reencontro.Milagres existem, e, quem sabe, possam alguns ainda ganhar, nãoapenas instantes de felicidade, mas que sejam agraciados com aliberdade, com o direito de ir e vir, e de rever pessoas amadas.Oimpossível não existe.
Guardo da Coréia do Sul as lembranças mais doces.Nunca vouesquecer Bulgug- Sá, o templo. Um dos mais antigos santuários budistasque existem na Coréia.Por aquelas imensas galerias o silêncioexige que se pise leve, de manso,em respeito aos quinze séculos queassistem a nossa passagem. Foi ali, tenho certeza, em Bulgug-Sá,pisando aquele chão, relutando em partir, que provei um pouco daeternidade. Agora, outros os tempos, aos ventos perdure, para sempre,uma bandeira de paz.
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora