Janeiro 2013
Rota para a vida
Não foi por outro motivo, senão pura curiosidade, a escolha
daquele de capa amarfanhada, gasta e um tanto rota, entre
tantos livros enfileirados e de bonita encadernação.
Era um dia de chuva e a indolência enrodilhada como um
gato angorá, dengoso, caviloso, era um convite insistente para
ficar quieta, sozinha num canto, sem compromisso, deixando
o tempo passar.
Naquela casa, grande como um convento, o gabinete era
um apelo àquela tarde fria. Talvez o aconchego do jacarandá
das paredes e prateleiras junto ao calor que emprestam os
livros, presença viva de gente que passou, de idéias que
esperam vez de tomar forma e pacientemente aguardam o
instante de falar.
O livro de lombada branca, cinza agora pelo uso, encolhido,
foi uma insinuação da ociosidade. Puxei-o, convinha
ao momento de lazer, com uma capa que espicaçava a
curiosidade e divertia. Adolescentes vestidas de gueixas, de
olhos ternos e atitudes suaves, eram ali, palhaços, que um
espírito galhofeiro se propusera a transformar. Sorridentes,
seriam lindas, mas uma caneta azul, gracejando, em traços
fortes pusera um bigode gordo sobre o riso doce, óculos
grossos nos olhares ternos, cavanhaque nos queixinhos finos
e barba espessa nas carinhas meigas. Algumas, banguelas,
provocavam de imediato o riso, e o livro, fosse lá o que fosse,
já preparava bem o espírito aventureiro na tarde chuvosa,
descompromissada, para aceitar a mensagem.
Abri e comecei a folhear, sem pressa, página por página.
Frases esparsas, anotações nos cantos das folhas, telefones,
sinais, códigos, rascunhos de bilhetes, lembretes para festas e
convites, horários de médicos e dentistas. Não teria segredo,
pensei, caso contrário, ali não estaria. E, pelo prazer de divertir,
satisfiz a curiosidade. Era uma agenda antiga, de anos
passados. Ali, espremida entre mil livros, uma vida retalhada
em dias, em horas, em compromissos, em planos. Uma lista
que parecia não ter fim, de amigos, diferentes quanto às idéias,
gostos e profissão, numa incontestável prova de abertura.
E anotações nas setenta páginas disputavam a atenção, em
letras maiores e menores, se misturavam numa algaravia de
projetos, compromissos, dias de aniversário. A obrigação de
comprar um batedor de carne e um casamento para o mesmo
dia brigavam pela preferência. Listas de compras, listas de
material de construção. Inaugurações a comparecer. Empréstimos
a serem pagos no banco em dias exatos, sugestões para
bem decorar um ambiente. Endereços da França e da Suécia,
endereços do Sul e do Nordeste. Contas, pagamentos, Projetos
de assistência a entidades filantrópicas. Coquetéis. Palestras.
Conferências na Universidade
Uma vida cronometrada. O tempo em pedaços, esmiuçado,
dividido. Retalhos do quotidiano, alguns valiosos, outros, no
entanto, farrapos esgarçados, já rasgados na poeira do tempo.
Fechei a agenda. E um gosto amargo me subiu à boca.
Será, pensei, que, cegos, deixamos que a vida, dom precioso,
se escoe assim em pedaços de nada? Da minha amiga, ali ao
meu alcance, um ano de vida. Outras agendas se juntariam
àquela, outros anos seguindo uma seqüência, a vida se indo!
E as indagações, perguntas de dedo em riste se me apresentaram,
pedindo conta, cobrando, exigindo pagamento pelo
tempo. Teria que responder por uma vida que não era minha,
mas que inconscientemente eu transferia.
Se lhe fosse possível recuar no tempo, repetiria os mesmos
fatos? O que restaria naquela velha agenda cinza? Teria dado
toda intensidade e brilho às ações a que se propusera? Teria
exaurido de si mesma todas as possibilidades e aproveitado
todo o seu potencial de energia? Ou o tempo fora malbaratado,
displicentemente gasto?
Como água nas mãos que não se pode reter, o tempo se
escoa, bem ou mal empregado. Se se juntou experiência, fortuna
que nem os anos e nem o tempo tira, se se acrescentou,
então se deu um sentido certo à caminhada. Se negligenciado,
então perdida a oportunidade de juntar.
Fatias do tempo fazem a vida. Horas e minutos que o
homem marcou, entre o nascer e o por do sol para criar e
imaginar, construir e realizar. Num exíguo espaço, um pouco
da eternidade. Se a esse pouco for dado toda intensidade e
toda luz, viveu-se em profundidade. Se se ficou na superfície,
viu-se apenas a vida, não se viveu.
A agenda da minha amiga, àquela tarde, valeu por
uma prestação de contas. Tantas eu encontre, quantas
irei contabilizar...Equivalem a ducha de água fria na vida
acomodada, a um toque de alerta, a um impulso ao todo
dia. Uma avaliação do que deve ou não ser feito, aceito
ou simplesmente tolerado. Uma correção na trajetória.
Uma rota marcada por melhores padrões, com o objetivo
de chegar a um alvo enriquecido por realizações pessoais.
Uma destinação e não simples acaso.
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora