Fevereiro 2009
Caminhos de ontem
Pisando devagar, e leve, como se temesse machucar as lembranças, iniciei o velho percurso tantas vezes repetido em outras épocas, ansiosa por rever paisagens e caminhos onde andei nos anos verdes, brincando e rindo de viver.
Retomei o mesmo trajeto. Emagreceram as ruas, pensei, as minhas ruas amigas, conhecidas, que me viram passar abraçada aos sonhos. Agora são simples vielas por onde uma multidão circula e pisoteia, indiferente. Perderam a importância, e da imponência as casas se reduziram a um comércio mascate, velhos fantasmas de outrora. Descascadas, esburacadas as fachadas, antes senhoriais, se transformaram numa procissão de portas banguelas, sem grades, sem peitoril, onde tantas vezes vi, debruçadas, as adolescentes de então, medrosas e tímidas, seguindo com o olhar, passos queridos.
Fugiram as esquinas! No lugar delas, uma grande praça me olhou, agressiva na beleza, e onde, frio e indiferente ao sentimento, um chafariz borrifava e lançava à quente atmosfera suas minúsculas gotas.
Tive ímpeto de correr, sepultadas ali doces lembranças, mas pesava como chumbo a sensação da volta, e seria uma covardia, pensei, fechar os olhos ao tempo e não aceitar a sua irremediável caminhada. Calmamente prossegui, procurando os cacos de ontem, catando o que havia sobrado das depredações.
Para atenuar no pobre coração a sensação de perda, lancei um artifício, e às velhas lembranças propus brincar de esconde-esconde. Ali, morava o avô, na casa de quatro janelões, a porta sempre aberta. Adiante, o colégio do deputado briguento e histérico, o riso franco da garotada passando, abarrotada de livros e cadernos, os passos apressados e os grupos formados, no portão, discutindo a prova, a lição, em febril algazarra. Agora, nem riso, nem garotada. Plantado, ali, gigantesco edifício se levanta para orgulho dos economistas da terra. Um sobressalto! E o quintal? Ali, verdejava o pé de seriguela, onde eu subia, montada nos cavalos de mentira, cavalgando veloz a imaginação. No chão, os buracos, cavados com esmero pelas mãozinhas miúdas, para as bolas de gude. E tudo voltou de repente, num segundo. A cozinha de lenha, os degraus quebrados da escada, o arrulhar dos pombos. O irmão à procura dos borrachos, mal saídas as penugens no corpo frágil das avezinhas. A imponência dos pombos-correio, sua aterrissagem linda, me trazendo preso ao pé, o esperado bilhete acertando a hora do cinema. E, na rua que já foi minha, comecei a procurar a velha casa, por entre as outras, espremidas, destituídas de valor. Gelei, inteira, parada no meio do quarteirão, sem reconhecer a porta por onde anos a fio entrei, carregada de planos! E fui seguindo a esmo, passando, olhando, um cinema, uma livraria. De repente, estupefata, frente aos vergalhões e as tábuas carcomidas de uma construção, eu vi, pregado, o número amigo, a placa azul da minha casa de menina. Parei. Ah! era ali....
E fui abraçando, uma a uma, as lembranças que chegavam. O piano tocando “la cumparsita”, os batentes da entrada, o trinco da porta que emperrava, o longo corredor. Uma vontade louca me assomou, de arrancar a velha placa empoeirada, como se fosse ainda minha, na vã tentativa de reter o tempo!
Ah! Tanto se perdera, já, na voragem dos anos, e a pequena placa não me traria os risos, a voz, os semblantes queridos! A tempo me contive. Parei de brincar, que era dolorido demais o jogo da saudade.
E decidi voltar pelo mesmo caminho. Na passagem, um “fícus” amigo que me vira crescer, ao me ver cabisbaixa e triste, segredou-me quase em sussurro:_ Não morri! Ainda estou de pé!
Criei novo alento e ergui a cabeça, decidida a viver, intensamente. Resistira ele! E eu também resistiria....
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora