Março 2009
Numa tarde de verão
Assisti à euforia da partida, a expectativa entre a proeza e o medo, as risadas de quem se propõe a uma travessura, o gosto da aventura.
Diante da imensa massa líquida ao se quebrar em gigantescas ondas ,se desfazendo em espuma rendada à beira da praia, o grupo de turistas discutia, brincava, posava para fotografias marcando o memorável instante, aguardando à hora de ganhar o mar na tosca jangada. Era uma tarde de pleno verão na praia do Iguape.
Imponente na sua simplicidade, grandiosa na sua ousadia, a jangada desceu a ribanceira sobre os rolos de madeira até o mar e deixou que as águas lhe lambessem o dorso, no ritual que se repete a cada dia, antes de se entregar, inteira. Dado o sinal, subiram todos, se agarrando às pressas ao mastro, ao samburá, aos rudes bancos, desajeitados, acenando, gesticulando, rindo.
Aberta a vela ao vento, pronta para seguir e já tomando rumo, a jangada se empinou diante da primeira onda que lhe lavou o piso. E correndo, veloz, foi singrando, enfrentando as ondas, uma a uma vencendo. Subindo à crista e tombando, se alteando e caindo, avançou mar adentro, na galhardia com que responde à carícia que lhe dá o vento.
Na beira da praia fiquei olhando, até que se distanciou, e se transformou, longe, num pequeno ponto. Distraída com a paisagem linda, o coqueiral, o trabalho das rendeiras nas choupanas de palha, nem sei quanto tempo velejou, mas quando me dei conta, vi que já estava voltando. Aliviada, suspirei, apreensiva, tanto eu sabia quão inaptos eram aqueles turistas para enfrentar o mar numa rude embarcação.
Agora, mais agitado, o mar refletia o céu cinzento, e nuvens escuras se formavam, ameaçando chuva. Intimamente me alegrava com a chegada, e parei para vê-los, tensa e medrosa ante as águas encrespadas. Foi quando, estupefata, presa a respiração, vi a gigantesca onda que se erguia, bem à retaguarda, e ameaçava açoitar a embarcação! Em segundos se levantaram as águas, verdadeira muralha, e a onda quebrou, forte, erguendo a jangada e arremessando-a! Sob o impacto, casca de noz oscilando, se inclinou mais para um lado, e despencou, lentamente, a branca vela. Virou a jangada! Deus nos acuda! De longe se podia avaliar o pânico, e os corpos que se jogavam nagua!
Num emocionante gesto de solidariedade, como se houvesse uma prévia com binação, a pequena multidão que, da praia, acompanhava a luta desigual, lançou-se ao mar, nadando ao encontro dos náufragos, obedecendo a um irresistível impulso de recorrer e salvar.
Fora o pânico, gritos, correrias, total nervosismo na palidez de cera nos rostos aturdidos, algumas escoriações provocadas pelo forte roçar das cordas e pelos paus quebrados, resultaram do passeio que poderia ter terminado em tragédia.
Cabisbaixo, mudo, sentado numa tauaçú, na branca areia, o jangadeiro tinha o olhar longe, perdido no vasto mar. O susto, a ameaça a tantas vidas sob a sua guarda, e o sentimento irremediável de perda, reduzida a destroços a jangada, a custo retirada do mar, davam-lhe a exata medida da fragilidade em que se firmava a sua vida. Para sobreviver, dependia e constantemente suplicava ao vento, às águas, às chuvas, ao mar.
Circunstancialmente ali se haviam juntado dois mundos, diferentes, e apenas por instantes dividiram preocupações e falaram a mesma linguagem. Um, de progresso, conforto e lucro fácil, de longe viera para desfrutar, como aventura, o quotidiano do outro, carente e dependente. Um, forte e bem nutrido, usufruía como diversão, de uma obstinada decisão de sobreviver do outro, temperada em maresia, no sol a pino, nas frias madrugadas em alto mar. Da difícil peleja, tinha no rosto profundos sulcos, e calejadas as mãos.
Herói, o jangadeiro! Sobrevive pela obstinação da própria vida em resistir, mesmo que para mantê-la, tenha que arriscá-la a cada dia!
Terrível paradoxo, pensei, ao vê-lo calado, cismando. E diante da injustiça, me acerquei, sem saber se deveria pedir desculpas ou perdão.
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora