Arbil 2012
Imaginação ou realidade?
Ela se acercou, linda e loura, nos seus dezoito anos, com um livro à mão, e me pediu que escrevesse, nele, algumas frases, alguns versos, sobre a vida, sobre o mundo, quem sabe sobre ela, algumas palavras em forma de mensagem, um recado meu só para ela.
A dúvida me assaltou, de cheio, questionando o que poderia ser dito, ali, no livro de pensamentos, que a satisfizesse, e que não fosse piegas e nem estivesse em desuso. Numa época em que ‘‘se’’ participa de todo projeto de vida ou de bem, admitindo-se sempre a possibilidade de derrota e propondo-se uma fuga como alternativa ao ideal, ao amor, a quem se elegeu o mais querido, era uma responsabilidade lançar uma mensagem. ‘‘Se eu não passar no vestibular eu...” ‘‘se o casamento não der certo eu...’’ ‘‘se compõe uma procissão de possíveis fracassos, onde se admite perder, deixar-se enganar, não atingir a meta apesar da auto suficiência e de todo ceticismo.
Há alguns anos, eu não me surpreenderia com um pedido igual, tão comuns eram os diários, os álbuns guardados em segredo, onde manchada a tinta borrada a letra, a página traía a dona dos protestos de amor, numa evidente demonstração da emoção que não conseguira reter, e rolar em lágrimas pelo rostinho doce. E as flores murchas, ressequidas entre as folhas do livro eram mais versos que se negara a escrever, por medo de ser o segredo descoberto.
Decidi adiar para um outro dia a mensagem à universitária, decidida e moderna, que falava, desenvolta, de Piaget, apregoava melhor distribuição de renda e pleiteava terra para os índios, revoltada com a injustiça. Aceitou as desculpas que lhe dei, e, sem perda de tempo, pediu a uma senhora idosa que estava ao meu lado, que levasse seu livro e escrevesse uma frase, um pensamento.
Passado um tempo, eu já nem me lembrava, e outra vez ela chegou, de livro à mão, cobrando-me a promessa. E então, indaguei, o que lhe escreveu a experiência? convencida de que superados os velhos conceitos e tabus, ela tivesse apenas aceito, e com condescendência, a mensagem da senhora.
- Ah! É o que há de mais lindo no meu livro, o que eu precisava ter para guardar.
Comecei a folhear, curiosa, e lá estavam as frases, em caligrafia legível, um pouco trêmula, que tanto apaixonaram a menina! Que mensagem, pensei, podem ter oitenta anos, para alcançar uma universitária hoje?
Com a alma tão cedo calejada, das notícias dos meios de comunicação, das lições que a televisão há tanto lhe transmite, propalando a violência, o desamor, a traição, a infidelidade, que palavras terá dito para encontrar guarida no coração da jovem moderna, sem meias palavras, autêntica e sem subterfúgios?
Eram simples, quase uma fórmula de como ser feliz, numa linguagem coloquial e amiga. Uma definição interior perante a vida, firme e decidida, coerente e equilibrada, propondo usar com sabedoria os dons e os próprios talentos. E começava assim: “sê bom, sê justo, pratica o bem com altivez e desinteressadamente...”. E retratava, em poucas linhas, um Homem, na exata medida da palavra.
A surpresa vinha no fim. Ao concluir, para explicar aquilo que escrevera, ela contava que aos dezoito anos, também jovem e linda, pedira ao avô que lhe escrevesse alguma coisa no seu livro de lembranças. E ele lhe dera aquelas mesmas frases, “ama, ama com sinceridade; crê no amor e na amizade” que agora transcrevia, aos oitenta anos, copiando do seu livro de páginas amarelecidas e desbotadas pelo tempo. Levara
adiante o que lhe causara, há muitos anos, enlevo e exaltação. Fiquei refletindo, e questionando a integridade do homem que, distan¬ciado no tempo, mudados os conceitos, mudados os costumes, a mesma mensagem recebe acolhida, e tem guarida tantas gerações depois!
Recebera a universitária, nos sábios ensinamentos, uma preciosa herança. No seu coração, gravadas, as palavras do seu tataravô...
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora