Abril 2010
Bonn, Bonn
Na peculiar conversa em volta da mesa, de frases entrecortadas, complementadas por trejeitos, grande era a euforia, na tentativa de se entenderem os doze, enquanto aguardavam ali, em Bonn, num restaurante, que o garçom rosado e forte, lhes trouxesse o pedido, cuidadosamente escolhido no menu alemão. Lá estavam os jornalistas, a convite do governo alemão, os indianos, o boliviano, o alemão, os chineses, o homem de Omam, o jordaniano, os brasileiros, o jornalista de Bangladesh, em verdadeira algaravia, ora se ouvindo inglês e castelhano, ora em um sussurrado francês, ou versos árabes ao meu ouvido, atento ao ritmo e à cadência das palavras. Inesquecíveis momentos.
Foi quando, no desejo de fruir de tudo ao mesmo tempo, paisagem, forma, comunicação, olhei ao redor, e vi na parede branca, uma placa patinada, com uma frase e uma data. A emoção tomou-me, por inteira. Aquele lugar, eu li, Beethoven costumava freqüentar, com uma amiga, para jantar, e algumas vezes dançar.
Reportei-me àqueles tempos, aos anseios, à sofrida expectativa do gênio que a humanidade inteira venera e que a história conta ter sido infeliz nos amores, desfeiteado pelas mulheres, e sempre recusado nas suas pretensões amorosas. Comparei ontem e hoje, a pouca valia do julgamento humano, o inconstante aplauso, a vulnerável afeição.
Desoladora tristeza foram os seus últimos dias, pobre de amigos, pobre de recursos, marcados de angústia, aborrecimentos e afrontas. Abalada a saúde, e tantas as dificuldades materiais. Surdo, infeliz, amargurado, num vinte e seis de março, Beethoven morreu.
Lamentavelmente se constata que através dos tempos a humanidade tem sido ingrata àqueles que lhe ampliaram os horizontes, enlargueceram-lhe o caminho, engrandeceramlhe a história.
Mestre-escola, igualmente pobre, Schubert seguiu como o pai a profissão de lecionar, resistindo ao apelo da sua vocação que era a criação musical. Rendeu-se afinal, e se entregou inteiramente à música, compondo sem parar. Pressionado, voltou às enfadonhas tarefas de mestre-escola sem condições financeiras para possuir sua própria casa, vivendo ora com um amigo, ora com outro. Sua inspiração, contudo, nunca arrefeceu, e legou à humanidade um patrimônio de sensibilidade, nas canções e peças que compôs. Sua história, marcada de recusas, teve poucas alegrias, nos amigos que se dispersaram, nos desejos artísticos que não se realizaram.
Os editores disputavam as suas obras, mas por elas o pagamento era exíguo, por demais insignificante. Esgotado pelo trabalho, vítima das privações e incompreensões, no auge da sua força criadora, Schubert morreu aos 32 anos de idade!
Evidenciando o gênio, Mozart, muito jovem ainda percorreu em peregrinação as cortes da Europa. Conheceu a glória, o aplauso, mas a decepção sempre foi uma constante, na retribuição material sempre reduzida, apesar da apoteose com que eram recebidas as suas obras.
Paradoxalmente sofreu a dor da privação, e esgotado, chegou a alucinações, compondo a pedido, o “Réquiem” com o pressentimento de criar seu próprio canto de morte. Poucos lhe assistiram o final. Pobre foi o seu enterro, pobre o cortejo que o acompanhou ao cemitério. Terrível a tempestade de neve desabou sobre Viena, àquele dia, e o pequeno grupo que o havia levado, abandonou-o, só, sem lágrimas amigas. No dia seguinte, sem ninguém que lhe demonstrasse afeto, foi jogado o gênio da música numa vala comum, sem música, sem oração, sem piedade. Aos 35 anos de idade! Sem nenhum sinal, sem marcas no jazigo que dissesse da passagem de Mozart por este chão.
O mundo inteiro aplaude, delira, se emociona e chora, rendido à centelha divina que existia em Beethoven, Mozart, em Schumann, em Schubert.
As provações que sofreram, agora esquecidas, o desespero, a solidão, as incompreensões se debitam à incoerência, à dor da ingratidão, à fragilidade do arbítrio humano, à transitória glória, ao brilho fugaz do aplauso.
Se um gênio da humanidade teve por tumba uma vala comum, qual a consistência do julgamento humano?.
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora.