Julho 2012
Parece que foi ontem...
Ela morava ali, tão perto, e eu nem sabia! E como poderia, se não havia placa na fachada, nem número, sinal algum, alguma cousa que indicasse ou mencionasse, de longe, a possibilidade! Por ali passei, tantas vezes, que até perdi a conta, indiferente, alheia conversando, brincando e rindo de viver. Ninguém me deu, sequer, um aviso, um alerta e bem que poderiam!
Mas vale voltar o relógio. O pensamento é mágico e em segundos traz tudo de volta. A festa começava muitos dias antes.Nos preparativos, além da euforia e da excitação, muito se tinha que planejar. Diferente de hoje, nem tudo era fácil de achar.
Papel de seda, barbante, cordão, bacia, alguidar. Tesoura, vela, barbante, muita lenha. Pote de barro, grande, para o aluá, de prontidão no canto da cozinha. Tigelas, muitas e de todos os tamanhos, de preferência, brancas, para o arroz doce, para a canjica, para o mugunzá. Muito milho, pão dormido, rapadura, batata doce. E, mãos à obra.
- Varre bem esse terreiro, menino, que a festança vai ser toda aí! Afasta os bancos e vamos logo pendurar as bandeirinhas!
Começava cedo o vai e vem, um entra e sai sem fim. No fogão, chiava a panela, na sala, alto o rádio tocava, e cada um que chegava, entrava gesticulando, perguntando, fazendo coro às risadas que vinham lá de dentro, do fundo do quintal: ...é noite de São João o céu está todo estrelado está todo iluminado pintadinho de balão quando eu era pequenino de pé no chão eu cortava papel fino pra fazer balão o balão ia subindo pelo azul da imensidão
O dia inteiro era aquela trabalheira, uma tarefa sem trégua, seqüência infindável de iguarias, tipicamente nordestinas, espalhadas no alto dos móveis da copa e da cozinha, nas mesas, nas prateleiras, que a festa quando começava não tinha hora de terminar. Nenhuma iguaria poderia faltar, e muito menos o aluá e o quentão que prolongavam a animação e a alegria.
Ainda claro, havia um ritual. Começava a arquitetura da fogueira. Tinha que ser especialista o doutor da artimanha. A fogueira tinha que ficar de pé a noite inteira e era preciso habilidade para o fogo ir pegando, devagar ganhando força, se alteando. No início pequeno bruxulear, e depois, gigantesca labareda, lambendo o chão, as hastes finas, as toras, um Deus nos acuda! Ali, se assava a batata doce, o milho verde, e à sua volta se confirmava a velha amizade: “São João disse, São Pedro confirmou, que nós havíamos de ser comadres, que Nosso Senhor mandou”! E nas três voltas em torno da fogueira o pacto se afirmava com o aperto de mão, voto que deveria perdurar a vida inteira.
Já escuro, diante de cada casa uma fogueira se acendia, e a impressão, de longe, era que a rua inteira ardia, labareda na fogueira, fé no coração.
Os convidados iam chegando pouco a pouco, as meninas, os rapazes, os casais de mãos dadas, juntinhos. E o calor da fogueira e o fogo do coração se encarregavam de animar a festa. Um pouco mais, descontraídos, começavam a função: na bacia nova as moças casadoiras… trêmulas, segurando a vela que pingava, tentavam ver, na água, a letra que se ia formando, pouco a pouco, a primeira letra do nome do eleito, com quem partilharia a vida. No espelho virgem, bento na fogueira, levado para o escuro, ali, às escondidas, se poderia ver o semblante de alguém a quem se daria o bem-querer. De repente, no negrume da noite, um vulto se esgueirava, buscando o fundo do quintal. No cerne da bananeira, inteiro, enterrava com ímpeto, o facão, há pouco benzera na fogueira. Ao puxá-lo, milagre, ali fora escrito o nome do amado com quem se casaria.
E prosseguia a dança, ao som da sanfona, da alegria, e a quadrilha se enrodilhava, se desfazia, continuava e tudo era riso e cor, música e euforia. Os olhares se encontravam, enternecidos, e havia uma promessa nas palavras ditas, quase um balbucio, para não quebrar a magia do São João. Poderia ser apenas o começo de uma história linda... As mãos se encontravam, se uniam e havia ali um tácito entendimento, que poderia perdurar, quem sabe? Um depois que chegaria...
Ah! ela morava ali e eu não sabia. E como poderia? Não havia placa, nem número em porta alguma que dissesse da possibilidade! Dona Felicidade cantava, dançava, rodopiava e sorria! Ali, em volta da fogueira, dançava com a vida, e eu não sabia...
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora