Julho 2014
Gente brava
Assisti a euforia da partida, a expectativa entre a proeza e o medo, as risadas de quem se propõe a uma travessura, o gosto da aventura.
Diante da imensa massa líquida, ao se quebrar em gigantescas ondas se desfazendo em espuma rendada à beira da praia, o grupo de turistas discutia, brincava, posava para fotografias, aguardando a hora de ganhar o mar, na tosca jangada.
Imponente na sua simplicidade, grandiosa na sua ousadia, a jangada desceu sobre os rolos de madeira até o mar,e deixou que as águas lhe lambessem o dorso, no ritual que se repete a cada dia, antes de se entregar, inteira. Dado o sinal, subiram todos, se agarrando ao mastro, ao samburá, aos rudes bancos, desajeitados, acenando, gesticulando, rindo.
Aberta a vela ao vento, pronta para seguir e já tomando o rumo, a jangada se empinou diante da primeira onda que lhe lavou o piso. E correndo, veloz, foi singrando, enfrentando as ondas, uma a uma vencendo. Subindo à crista e tombando, se alteando e caindo, avançou mar a dentro, na galhardia com que responde à carícia que lhe dá o vento.
Distraída com a paisagem linda à minha volta, o coqueiral, o trabalho das rendeiras nas choupanas de palha, perdi as horas, e nem sei quanto tempo velejou!Quando me dei conta, a jangada já estava voltando! Aliviada, suspirei, tanto eu sabia quão eram despreparados aqueles turistas, para enfrentar o mar numa rude embarcação.
Mais agitado, o mar refletia, cinzento, o céu, e nuvens escuras se formavam, ameaçando chuva. Intimamente me alegrava com a volta, e parei para vê-los, tensa e medrosa ante as águas encrespadas. Foi quando, estupefata, presa a respiração, vi a gigantesca onda que se erguia, bem à retaguarda, e ameaçava, açoitando a embarcação! Em segundos se levantaram as águas, verdadeira muralha, e a onda quebrou, forte, erguendo a jangada e, arremessando-a! Sob o impacto, casca de noz, oscilando, se inclinou mais para um lado, e despencou, lentamente, a branca vela! Virou a jangada! De longe se podia avaliar o pânico, e ver os corpos que se jogavam nágua. Num emocionante gesto de solidariedade, como se houvesse uma prévia combinação, a pequena multidão que, da praia, acompanhava a luta desigual, lançou-se ao mar, nadando ao encontro dos náufragos, obedecendo a um irresistível impulso de recorrer e salvar.
Fora o pânico, os gritos, o nervosismo, a palidez de cera nos rostos aturdidos, apenas algumas escoriações provocadas pelo forte roçar das cordas e pelos paus quebrados, resultaram do passeio que poderia ter terminado em tragédia.
Cabisbaixo, mudo, sem palavras, numa tauaçú na branca areia, o jangadeiro tinha o olhar longe, perdido no vasto mar. O susto, a ameaça a tantas vidas sob a sua guarda, e o sentimento irremediável de perda, reduzida a destroços a jangada, a custo retirada do mar, davam-lhe a exata medida da fragilidade em que se firmava a sua vida. Para sobreviver, dependia, e constantemente suplicava ao vento, às águas, às chuvas, ao mar que fossem brandos .E a Deus, que minorasse a expectativa de cada dia, sempre ameaçado!
Circunstancialmente, ali se haviam juntado dois mundos, diferentes, e apenas por instantes dividiram preocupações e falaram a mesma linguagem. Um, de progresso, conforto e lucro fácil, de longe viera para desfrutar, como aventura, o quotidiano do outro, carente e dependente. Um, forte e bem nutrido, usufruía como diversão, de uma obstinada decisão de sobreviver, do outro, temperada em maresia, no sol a pino, nas frias madrugadas em alto mar. Da difícil peleja, tinha no rosto profundos sulcos, e calejadas as mãos. Nunca soubera de escola, de máquina de escrever, de computador!
Herói, o jangadeiro! Brava gente do mar! Sobrevive pela obstinação da própria vida em resistir, mesmo que, para mantê-la, tenha que arriscá-la a cada dia!
Terrível paradoxo, pensei, ao vê-lo calado, cismando, olhando o mar, se quebrando as ondas, uma a uma..E diante de tanta injustiça me acerquei, sem saber se deveria pedir desculpas ou perdão.
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora