Setembro 2015
Um verbo para o encantamento
Envolvida em bruma, enroscada em preguiça, parece
que a cidade se recusa a despertar nestas manhãs.
Abre-se a janela, e a vontade é de voltar, correndo, para
a cama, que o aconchego dos lençóis combina com a
paisagem lá de fora, quietas as árvores, acinzentado o
céu, imóveis as papoulas. Um silêncio no ar, estranho
ritual a preparar algo indefinido. Apenas um longínquo
pipilar de pardais, um arrulhar nos nichos do telhado
da casa vizinha, quebram a mudez da manhã.
O Sol, parece, se mudou para outro quadrante e por
nenhuma brecha do céu pôde espiar a Terra, transformadas
as nuvens em espessa cortina. Perderam as
árvores a densa folhagem, e desnudas, são silhuetas
negras, perfiladas, ao longo das avenidas por onde
passam os homens, de olhos fitos no relógio, sempre
apressados. Escravos do tempo, o pensamento longe,
arquitetando, ora um plano para abordar o chefe, ora
catando os adjetivos para dar maior ênfase às pretensões,
ora a programação para o dia inteiro. Nunca
deixam de pretender, de desejar. E não têm olhos para
a lição que a natureza oferece, no silêncio previamente
combinado, no ritual que ora se inicia, sem alarde.
Enquanto se despoja de beleza, ressequidos os galhos
das árvores, despidos de folhagem, pondo a descoberto
as cicatrizes e os nódulos, fantástico ciclo de vida se
processa no segredo da terra. Em grande azáfama, pelos
vasos lenhosos do vegetal corre a seiva, ininterrupto
fluxo da raiz ao caule, se distribuindo pelos galhos,
milagre, se multiplicando pela árvore inteira. E o
mistério da vida continua, mesmo esturricado o chão,
aparentemente extenuado o vegetal, hirto, pedindo
clemencia.
Segredo, apenas se recolhe, hibernando, e pouco lhe
importa a aparência e a aridez que empresta à paisagem.
Armazena forças, restaura energia, e com avidez
se prepara. Diferente do homem. Não improvisa. No
exato momento, um pouco mais de tempo e explodirá,
dará seu grito de festa.
O angico que elegi para meu encantamento, entre
centenas de árvores, se recolheu à insignificância!
Pobre, perdeu o rendado por onde a lua vinha,
curiosa, olhar os devaneios da Terra. Sem expressão,
aniquilado, domina a paisagem na sua nudez e na sua
desvalia, que nenhuma sombra dá, e onde nem mais
os passarinhos estão fazendo ninho!
Conheço os seus ardís. Como as demais árvores que
ora montam guarda, hirtas, ásperas, ressequidas, desnudas,
apenas se trancou, se reservou, tenta se poupar,
guardar força e energia. Um pouco mais de tempo,
questão de dias, quando atingir o auge, explodirá! E
então, num colorido vivo, terá sua apoteose. Como
um rei se vestirá. Esplendoroso, na sua roupagem
, dominará o vale, e altaneiro lançará ao vento seu
manto de esperança. Explodirá em verde o angico
do vale, numa tácita combinação com todo o mundo
vegetal. Numa mensagem de cor, numa lição de
vida. Engalanados para a festa. Vestidas de púrpura
as quaresmeiras, em escarlate os flamboyants, de
amarelo vivo os ipês, renderão seu preito à Primavera
que vem a caminho.
Há um segredo no ar, na quietude, velados sinais de
que, breve, o festival irromperá. Uma magnificência
que só a natureza sabe criar. Nas cores mais vivas, no
matiz mais rico explodirá, solene, o coração da Terra.
Primavera que chega, se renova, em cor, em generosidade,
em doação, a alma das coisas. Ah! Pudesse
o homem ter olhos para ver. Aprendendo a lição,
pudesse também primaverar. Sem impor limites Amar em plenitude.
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora.