Novembro 2009
Homem total
O carro corria , normalmente, pela Esplanada dos Ministrios, com um bom desempenho, aparentemente sem problema algum. Fechado o sinal de trnsito, obrigada a parar, de repente o motor silenciou. Quando o verde acendeu, apesar das inmeras tentativas, abrindo e fechando a ignio, afundando o p no acelerador, puxando o afogador, o carro relutou, imvel! Indiferente s minhas ntimas splicas e ao meu esforo.
Mas, de repente, caprichoso, aceitou a ltima tentativa, e se ps em movimento, para alvio meu e dos que estavam atrs, protestando, buzinando insistentemente. Adiante, contudo, no prximo sinal, enguiou de vez. E me vi no meio de um trnsito engarrafado, surpresa, e medrosa, pelo mal que involuntariamente causava! Em questo de segundos se empilhavam
Os carros, apressados querendo passar! Pareciam todos atrasados para pegar um avio, um trem, ou preocupados em assistir os ltimos momentos de algum muito querido! O motorista do gigantesco nibus, de punhos cerrados e vociferando, quase se atirou sobre o carro da mocinha que se desviou um pouco mais para a direita! E desorientada, em pnico, me senti uma r, cercada por centenas de mquinas ameaadoras e mil olhos acusando!
Foi quando, num carro que passou rente ao meu, uma voz gritou:"_ Quer ajuda?" ao que respondi, de pronto, sem vacilar, no mesmo tom: "_Demais!" E vi quando se afastando, fugindo do trnsito, o carro se encostou na amurada do viaduto, e parou. Ah! Quase cantei aleluia, tendo ali um salvador. Cavaleiro da Tvola Redonda.
Os olhos fixos naquele que oferecera auxlio, aguardei que abrisse a porta do veculo e rpido viesse prestar socorro.No exato instante, um arrepio me percorreu o corpo inteiro, tamanha a emoo! Eu no podia acreditar no que os meus olhos viam. Tranqilo, ao sair do carro, encostou primeiramente as duas muletas na lateral do veculo. E com grande dignidade, cabea erguida como quem enfrenta difcil peleja, veio ao meu encontro.Firmemente segurava o aro de ao que empunhava em volta das mos para dar equilbrio ao corpo, que as pernas, bambas, no lhe ofereciam apoio. E caminhava com dificuldade, agredido visivelmente, mas solene, por entre aquela louca procisso de carros.
Em pleno uso da fora pela lei da compensao, em pleno uso das faculdades, superava a deficincia e as limitaes, e se acercou como se no estivesse fazendo algo extraordinrio, uma faanha inesquecvel! Em chegando, outra vez encostou as muletas e se lanou no assento do carro para procurar a causa da repentina parada. Era extraordinrio o fato e ele nem se apercebia! No pela tentativa de ajudar um motorista, companheiro de trajeto, fato corriqueiro nas estradas, mas por ser entre aquela multido, exatamente ele, deficiente, agredido fisicamente, sem o controle das pernas e caminhando s com o auxlio das muletas, o nico a oferecer ajuda, apoio, segurana!No tendo, em igualdade com os demais, firmeza e equilbrio, superava as limitaes, e dava uma demonstrao de solidariedade absoluta, apesar da sua aparente fragilidade.
Humilde, quase a lhe pedir desculpas pelo esforo que involuntariamente lhe pedia, surpresa, acompanhei cada movimento e cada gesto que fazia.
Por certo ele cantava vitria, intimamente feliz, e muito mais, eu, pela constatao da fora interior que traz o homem dentro de si, e do homem pleno que cada um pode levar, tornando evidente que essa fora espiritual, e que o corpo complementa e manifesta.
Ao socorro, outros circunstantes se juntaram. E a pane foi vencida.Ao retomar o caminho de casa, embora assustada e aturdida, o corao entoava um hino de alegria, pelo privilgio de, naquele comeo de noite, ter me deparado, frente a frente, com um homem total. Acima do seu corpo mutilado fulgia um esprito indomvel, temperado por uma sofrida determinao
(*) Regina Stella (Fortaleza), jornalista e escritora.