Junho 2009
Cearense anônimo, mas nem tanto
*Publicado no blog do Macário Batista, em 28.06.2009*
Quando o presidente Juscelino decidiu construir a capital do país no
planalto central, muitos cearenses se animaram com a oportunidade para
mudar de vida.. Pedreiros, carpinteiros, ajudantes de obra, agricultores,
comerciantes, fotógrafos, profissionais liberais desempregados e até mesmo quem não tinha profissão, muitos se aventuraram. Vieram formar o contingente de. 64.314 mil candangos que trabalharam febrilmente na construção da cidade.
A maioria saída do Nordeste, principalmente Ceará, Maranhão e Piauí. De minha cidade, Ibiapina, ainda menino acompanhei a saída de ônibus e caminhões. A força jovem do interior do estado transportada em pau-de-arara, sem o menor conforto. Dias e dias de viagem em estradas esburacadas em busca do desconhecido. Deixaram com as famílias a esperança de um dia poder chamá-las para morar na cidade que ainda nem existia.
Vi meu tio Oséas saindo com os dois filhos mais velhos.. Lembro também do dia em que voltou para pegar a família. Vestia calça cáqui de brim e calçava botas de canos longos, sujas de poeira, que ele dizia ser da obra. Quando cheguei aqui alguns anos depois ainda senti a poeira de Brasília, vermelha e fina, que o vento levantava em redemoinhos e espalhavam por toda parte. A saga desses operários em construção não foi fácil. Acomodações precárias, trabalho diuturno, sem conforto, sem diversão.
O encarregado da construção, Israel Pinheiro disse um dia que a obra que deu mais trabalho foi a do Congresso Nacional. A sede do Poder Legislativo é quase uma cidade. Câmara e Senado com seus blocos de 28 andares em forma de H tinham tantos operários, que para transmitir as ordens foi instalado um sistema de alto falante. Depois das coordenadas e mensagens sobre turnos de trabalho, distribuição de tarefas, os engenheiros mandavam tocar música clássica para diminuir o estresse, acalmar os ânimos. Faltando poucos dias para a inauguração, Israel Pinheiro entrou em pânico, com medo que a obra não ficasse pronta. Foi quando teve a idéia de tirar a música clássica e colocar no sistema de som o tico-tico no fubá, de Zequinha de Abreu. Aí todo mundo passou a trabalhar no ritmo animado do chorinho e o Congresso foi inaugurado junto com os outros prédios. O que mais atrapalhava a permanência em Brasília era a saudade do Ceará, dos parentes que lá ficaram. O jornalista Clemente Luz veio de Minas e ganhava a vida escrevendo cartas para as namoradas, noivas e esposas dos candangos. Arranjou uma mesa e um tamborete e ficava na Cidade Livre, perto do mercado, anotando (e às vezes melhorando) o que eles lhe ditavam, reproduzindo o sentimento puro e verdadeiro daqueles homens iletrados. -”Mulher – contava Clemente Luz- já saí do alojamento e agora estou morando numa casa que fiz com duzentas sacas de cimentos”. A mulher não pensou duas vezes. Vendeu tudo que tinha e se mandou para Brasília. Tamanha foi à surpresa quando descobriu que a casa existia, só que de papelão, construída com 200 sacas de cimento vazias. Um barraco que lhe serviu de abrigo, a ela e aos filhos, enquanto durou a obra.
Nos 50 anos da cidade, fala-se com justiça em JK, no urbanista Lúcio Costa, no gênio imortal de Oscar Niemeyer, no paisagista Burle Marx, em Israel Pinheiro, Bernardo Sayão e nos milhares de candangos, os verdadeiros heróis dessa epopéia. Quem são, quantos foram? Não há registro dos nomes. Trabalhavam para empresas de construção que trocaram de dono, de cidade ou já não existem.
Passado meio século, uns tantos já morreram, outros voltaram para o
Ceará, mas alguns ainda estão por aqui, anônimos, vivendo numa das 30 cidades satélites do DF, onde curtem as lembranças do tempo em que tudo começou e do duro que deram para erguer a cidade monumento.
Mas como soldados na guerra, viraram heróis anônimos. Seu feito de
bravura é que garantiu a vitória final, e hoje são história compartilhada apenas pelos familiares, os amigos mais íntimos. Como na guerra, o herói anônimo que saiu do Ceará e veio com toda a sua energia misturar seu suor a cimento, cal, pedra e tijolos, para transformar isso tudo em Brasília, é lembrado hoje no principal logradouro da capital. Ele e todos os outros que fizeram a cidade.
Está lá na Praça dos Três Poderes, quase em frente ao Palácio do
Planalto, a escultura em bronze do artista plástico Bruno Giorgi, altiva e esguia nos seus oito metros de altura. Ele a batizou de Guerreiros. O povo veio por trás e apelidou de Dois Candangos, numa homenagem simbólica ao sacrifício dos que trabalharam na construção.
Ela é a lembrança permanente dos cearenses sem medo, que largaram seu chão rumo ao Planalto Central atendendo ao apelo de JK, sonhando com o Eldorado, a terra prometida onde jorrava leite e mel como no sonho de Dom Bosco. O cearense candango sem nome, mas que deixou em Brasília a marca de sua mão e de sua esperança.
(*) Wilsom Ibiapina (Ibiapina), jornalista