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Março 2013

Com Raposão, perdidos em Jerusalém

Como ouro incrustado na pedra, o Domo da Rocha brilha no coração de Jerusalém. É um dos mais famosos símbolos da cidade, que Ana Maria e eu deixaremos, dias depois, com o sentimento de hadjis, muçulmanos que fazem a peregrinação a Meca. Pelo ceticismo que o caracterizava, assim não foi com Eça de Queirós, que por lá esteve em 1869, quando foi ao Egito para a inauguração do Canal de Suez. A viagem inspirou-lhe o romance A relíquia, lançado em 1887, história das aventuras do português Teodorico Raposo – o Raposão, para os amigos –, que compra na Palestina um verdadeiro tesouro cristão para a tia Patrocínio, velha carola de quem espera herdar o rico patrimônio.

Em uma tenda armada na planície de Canaã, o personagem adormece e sonha que, com o amigo alemão Topsius, está na Jerusalém de Pôncio Pilatos, onde assiste ao julgamento, crucificação e morte de Jesus. Depois, impressionado com o que acontecera, toma o cavalo, chega de volta à barraca e dorme, para imediatamente despertar do sonho... em 1875, corte narrativo com que Eça faz correr quase dois mil anos em um segundo. A passagem, grandiosa, antecipa o que Stanley Kubrick faria, em 1968, no filme 2001, uma odisseia no espaço, quando o osso que o macaco joga para cima se transforma em uma nave espacial.

Diferentemente do que achou o protagonista, Jerusalém não me pareceu “uma vila turca, com vielas andrajosas, acaçapadas entre muralhas cor de lodo, e fedendo ao sol sob o badalar de sinos tristes”. Mais do que para contemplar monumentos, cruzei-lhe os portões em busca de mim, pois como escreveu John Reed, o autor de Dez dias que abalaram o mundo, a fé é apenas outra palavra para o encontro consigo mesmo. Por entre sinagogas, mesquitas e igrejas, o guia Sérgio Rushansky nos contava de rabinos, imãs e sacerdotes quando, frente a uma estátua de Davi, perdemo-nos do grupo: Ana Maria, eu e Joaquim Silva, não somente português como Eça de Queiroz, mas natural, também, da Póvoa de Varzim! Com esse Raposão ressurecto, começamos a pedir informações aqui e ali, andar por ruelas, subir e descer escadas, dobrar à esquerda e à direita, à procura de vencer o labirinto para alcançar o Muro das Lamentações, ponto final do roteiro naquela manhã.

Enfim demos com ele, o Muro Ocidental, como também se chama o que restou do Templo de Herodes, posto abaixo por Tito no ano de 70. Sagrado para os judeus, transcende hoje as fronteiras da religião para se fazer visitado por católicos, evangélicos e ateus, reunidos em um ato de solidariedade humana e comunhão com o próximo. Era sábado, o shabat, dia que se reserva à oração e ao descanso, em que aos ortodoxos não se permite nenhuma atividade, sequer dirigir, preparar comida ou apertar botões: entre o pôr do sol na sexta e o pôr do sol no sábado, o hotel em que ficamos programou um elevador que parava em cada andar, sem que se tivesse de chamá-lo...

Enquanto não nos reunimos à turma, o compatriota de Eça conta das viagens pelo Brasil, do papagaio que comprou no Acre e levou, sabe-se lá como, na bagagem de mão para a terrinha, onde viveu quatro anos e agora jaz empalhado, em silencioso colóquio com o amigo lusitano...

Ao pé do Muro, separados por divisórias metálicas, homens e mulheres oram, cantam, movimentam o corpo para frente e para trás, põem pedacinhos de papel com pedidos e louvores nos interstícios dos grandes blocos de pedra. Também levei-os, a me lembrar da fotografia em que um judeu ortodoxo fala ao celular diante do Muro das Lamentações, em vez de pôr os papeizinhos. Faz sentido: a comunicação com o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó será direta, com a vantagem de que, em Jerusalém, a ligação deve ser local.

 

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Edmilson Caminha (Fortaleza), escritor


                                            


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