Em 1945, o Brasil ouvia choros, dançava polcas e se rendia ao encanto das valsas quando um sanfoneiro de Pernambuco, Luiz Gonzaga, inventou o baião – gênero que não apenas enriquecia o cancioneiro nacional, mas se contrapunha aos sucessos de band leaders como Glenn Miller e Benny Goodman, que ganhavam o mundo embalados pela vitória americana na Segunda Grande Guerra.. Hoje, é difícil imaginar o estrondoso sucesso do nordestino de cara redonda e sorriso largo, cujo centenário de nascimento se comemora neste ano, autor de obras-primas como “Assum preto” e “Asa branca”, que o Brasil inteiro sabia de cor. “Quando o verde dos teus óio / se espaiá na prantação”... – ao ritmo da sanfona, do triângulo e do zabumba, poucos talvez reparassem, nos versos de Humberto Teixeira, a imagem plena de beleza e poesia.
Em 1966, na era da jovem guarda e do iê-iê-iê, já não se cantava tanto o “Xote das meninas”, mas Luiz Gonzaga seguia famoso como o Rei do Baião, viajava o ano todo, ia sempre ao Ceará levado por Irapuan Lima, animador de programas de auditório e empresário de artistas e cantores, que fazia questão de hospedar na própria casa, em aconchegante apartamento que construíra só para eles. Aluno da terceira série do Ginásio (hoje Colégio) 7 de Setembro, compunha eu a diretoria do grêmio literário que, uma vez por semana, promovia sessões para torneios oratórios e números musicais.
Sabedor de Gonzaga em Fortaleza, para uma série de shows, descubro o endereço do empresário, aperto a campainha e, com a coragem dos meus 14 anos, proponho ao Rei do Baião, como quem oferece um bom negócio, que abrilhante, dali a dois dias, a sessão do nosso grêmio – de graça, nem precisa dizer... O sanfoneiro, sorridente, explica que não dá, está cheio de compromissos, quem sabe da próxima vez. Perdera a batalha mas não a guerra, e toco a telefonar pra ele, de manhã cedo já estou na linha – por favor, é rápido, o senhor canta só uma música... Vencido pelo cansaço, o sertanejo de Exu entrega os pontos:
— Olhe, meu filho, quarta-feira eu vou estar em um programa da Rádio Dragão do Mar, ali na Avenida do Imperador.
É perto do seu colégio?
— É, sim, na mesma rua!
— Pois então pronto: você me pega lá às 10 da manhã. Quando chega, às 8, não contém a surpresa:
— Tu já tá aqui, menino?!
Duas horas depois, tomamos um táxi que em alguns minutos nos deixa no Ginásio 7 de Setembro. O auditório quase vem abaixo quando as centenas de alunos que o lotam veem Luiz Gonzaga a poucos metros, o chapéu de couro cheio de estrelas e pespontos, o gibão a nos lembrar a gesta dos vaqueiros, a sanfona Todeschini com o dourado da inscrição sobre o fundo branco: “É do povo”. Abre o fole e começa, o vozeirão marcante que ecoava em todo o Brasil: “Eu vou mostrá pra vocês / como se dança um baião...”; a seguir, “O cheiro da Carolina”, “ABC do sertão” e “Boiadeiro”, a chave de ouro com que encerra as suas apresentações: “Vai boiadeiro que a noite já vem / guarda o teu gado e vai pra junto do teu bem...”
Subo ao palco para dizer da honra que nos proporcionara, quando Gonzagão se faz de vítima do meu assédio e passa o troco a quem não o deixara em sossego:
— Eu só vim cantar aqui por causa da persistência deste menino, que não me largou do pé desde o instante em que cheguei a Fortaleza. Parece um carrapicho, daqueles que grudam na meia e a gente só vê quando tira o sapato. Ô bichim teimoso!
E Carrapicho fiquei sendo no colégio – eu, que gosto de tratar e de ser tratado pelo nome. O apelido, porém, nunca me incomodou: afinal, quantos plebeus se podem dizer merecedores da brincadeira carinhosa de um rei...?
(*) Edmilson Camainha (Fortaleza) consultor legislativo e escritor NE – Homenagem do Ceará em Brasília ao Rei do Baião, Luiz Gonzaga, nos seus 1oo anos e que, junto com outro cearense centenário, Humberto Teixeira, colocou o baião definitivamente na Música Popular Brasileira. Luiz como sanfoneiro e intérprete e Humberto com compositor..