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Agosto 2008

Lição de vida no diálogo dos bilros


Amanhecendo, se insinua pela veneziana entreaberta a claridade, e no aconchego de uma rede, jangada em terra firme, ouvindo o barulho do mar, é tão forte o apelo que você impreterivelmente se levanta, e pelas frestas da janela tenta ver, lá fora, a amplidão, e o dia chegando.

Difícil permanecer no limitado espaço de quatro paredes, que persiste o chamado! Obedecendo a uma necessidade imperiosa você abre a porta, sai, e estarrecido se depara, frente a frente, com uma gigantesca massa líquida que se prolonga até a linha do horizonte! É tão fantástica a sensação de grandeza e magnitude que você hesita, se deve cair de joelhos, se deve rezar ou, em êxtase, ficar imóvel, quieta, ante a beleza que se mostra, plena! Você está no Iguape, uma praia branca, cercada de dunas e de coqueiral, a ouvir, tão só, o rugido do mar, e o silêncio dos seus próprios pensamentos.

Ali, nessa praia branca, mora Liduina, e ali está seu mundo, seu reino, seu castelo. Além do horizonte, além das dunas, que lhe importa o resto? Por acaso cheguei à Liduina, pelos encantos de uma choupana de palha, pau a pique, armada em pleno areal.

Quando sopra o vento, estranho balé, freme a choupana inteira, nas palhas que acenam e, parecem, vão se soltar, secas e finas, entregues à louca brincadeira. Ali encontrei Liduina, sentada no chão, diante da almofada, a jogar de um lado para o outro os bilros de madeira, executando com os dedos um fascinante ritual: se abraçam, se embolam, se pegam, se separam, e vão tecendo a renda, flores e guirlandas, que sem dó os cardeiros aprisionam, no papelão que lhes serve de modelo e guia.

Prosseguiu no trabalho, indiferente, quando me viu, curiosa e aparentemente bisbilhoteira, a indagar da sua vida, do seu mundo. Mas quando sentiu que havia mais solidariedade que bisbilhotice, parou, e com dois dedos de prosa me deu uma lição de como ser feliz no pouco. Percebendo a minha total aquiescência, não se fez de rogada, e sem que precisasse manifestar desejo, convidoume a entrar no seu barraco. Dois cômodos, apenas, Numa rede branca armada, tendo presos os punhos nas estacas que serviam de arrimo, dormia, tranqüilo, o neném, embalado pela brisa da tarde, em doce vai-vem. Usufruía, tão só, o bem maior, a vida, sem nada mais querer. Sem colchão de espuma, sem lençol de linho ou de tergal, sem ursinhos de pelúcia.

Dividia ainda mais o seu despojado mundo, empilhadas as palhas de carnaúba, do chão ao teto, ocupando a metade do quarto! Uma outra dependência seria acrescentada, quando a venda do peixe rendesse um pouco mais, e mais cheio voltasse o samburá da difícil lida de, na jangada, em alto mar, garantir a sobrevivência da família! Pescador, o marido de Liduina, se aventurava naquele imenso e misterioso mundo, dia e noite, muito além da linha do horizonte, terçando linha, anzol e expectativa, seus instrumentos de trabalho, para oferecer na mesa farta dos outros a garoupa, o cação, a cavala, o robalo. Para si mesmo bastava a simples peixada com pirão de farinha que Liduina lhe preparava para levar, já pronta, no farnel de cada jornada.

Sobre a fragilidade de uma jangada, com espaços limitados para ir e vir, o jangadeiro enfrenta horas e horas de um labor sem descanso, todo feito de incertezas e blandícias, na luta entre o peixe e o homem, onde a sedução da isca nem sempre traz o resultado esperado. Ainda assim ele sonha, ele deseja, ele ama, ele espera, e traz, permanente no coração, renovadas esperanças de que o melhor ainda está por vir.

Na praia, uma pequena multidão, ansiosa, o aguarda, para regatear o fruto do seu trabalho, seguindo a lei da vantagem, sem nem de longe vislumbrar o quanto de esforço e de energia dispendida, na tocaia constante, vai ali concentrada, no peixe que vai sendo atirado à areia, no pregão de habilidades da oferta e da procura.

No pouco, apurado, estão o leite do menino, a farinha do pirão, o chitão do vestido, a linha para os bilros. E onde não pode faltar, a pinga para temperar as forças e colorir de ilusões as noites em terra firme.

Sob o compasso leve da dança dos bilros, na trança programada para tecer uma flor, Liduina me mostrou essa nesga de vida, feita de labor e obstinaão, com o testemunho persistente dos sussurros do mar.



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Regina Stella S. Quintas
Jornalista e Escritora
studartquintas@hotmail.com

                                            
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