Outubro 2008
Acopiara – como nos despedimos dos que se foram
A arte de viver se contrapõe à arte de morrer.
Se eventualmente temos, nos dias de hoje, dia e hora para nascer, graças aos avanços da medicina, o mesmo não podemos dizer que temos dia e hora para morrer. Salvo por morte encomendada, uma prática que se generalizou em várias partes do mundo, civilizado ou bárbaro. Salvo por morte decretada em juízos formais e informais, seja por cadeira elétrica, fuzilamento, esquartejamento, decapitação, enforcamento, apedrejamento etc. Cabra marcado para morrer, vai pro inferno mais cedo.
Todos nós sabemos que um dia vamos morrer. Antigamente se dizia que somente os bons morriam cedo. Há controvérsias. Uns dão mole. Outros tentam adiar, como podem, comendo folha, frango, peixe, fibras, fazendo exercícios ou tomando pílulas, gotas e bolinhas.
Quando nascemos, a recepção tem, na medida das posses de cada um, o ritual que chega aos píncaros da glória. Foi-se o tempo da parteira. Não se nascia direito, era arrancado. O parto normal virou exceção. Nas maternidades, dependendo do cliente, o tratamento vai de um a mil. Podem ter médicos, enfermeiras e uma parafernália de cuidados e atenções. Os enxovais que nos recebem podem ser modestos ou suntuosos. Ao chegarmos em casa pela primeira vez, berços, mamadeiras, fraldas, babás, leite materno ou de lata, pediatras. Um luxo. Entre os pobres, mínimo do mínimo.
Muito diferente quando morremos. Nas grandes ou pequenas cidades, em hospitais, emergências, ambulâncias, macas ou em casa, vítimas de acidentes, doenças degenerativas, infecto-contagiosas, erros médicos, filas de transplantes etc.
Até aqui escrevi em tese, para propor uma reflexão como nos despedimos dos nossos mortos em Acopiara, a 360 km de Fortaleza, com seus 48 mil vivos, 20 mil penando no mundo, e 200 mil entre o céu, o purgatório e inferno.
Recordo-me que na década de 40 e 50, ainda não havia hospitais, as pessoas morriam em suas casas, cercados de seus entes queridos. O processo da agonia era doloroso, até o último suspiro.
Sabíamos quando alguém morria porque a energia elétrica ficava ligada toda a noite. Na manhã, os alto-falantes da VPS anunciavam a morte e convidavam para o enterro.
O velório acontecia em casa, tudo muito fúnebre. O luto começava ali. A pratica continua viva e atual. Ainda em julho último, constatei.
Os abastados eram sepultados em caixões, geralmente discretos, realizando-se uma procissão entre a casa e a Igreja para um ato religioso e dali para o cemitério, onde eram enterrados no jazigo da família. O sacristão tocava o sino acompanhando o cortejo entre a Igreja e o cemitério.
Os desfavorecidos, da cidade, eram sepultados no “caixão das almas”, do Círculo Operário, reutilizável, que ia da casa para a igreja e dali para a cova rasa no cemitério, em cortejo, mas sem sino e, dos sítios, vinham na “rede das almas”, também reutilizável, trazida em cortejo, passavam pela igreja e iam para a cova rasa. Há décadas que o tempo de permanência não chega a dois meses. Findo o prazo, os restos são recolhidos ao ossário e o espaço é reocupado por algum falecido que entrou em óbito.
Houve um tempo em que a previdência social pagou auxilio funeral, com o objetivo de dar dignidade só aos seus segurados mortos. Mas foi tão grande a corrupção dos vivos que o morto perdeu o auxílio. Desde então, o prefeito de plantão e os políticos da cidade e região são convocados para pagar o enterro. E se não pagam perdem votos, são execrados.
Sim, o crematório não chegou à Acopiara.
Conta a lenda que nos velórios aconteciam coisas impossíveis de se imaginar. As jovens viúvas, por exemplo, eram cumuladas de pêsames, atenções e olhares. O mesmo acontecia com jovens viúvos. Ambos guardavam luto fechado e praticavam a abstinência sexual. Se fossem feios, o prazo alongava e o jejum também.
Nos tempos atuais, as coisas mudaram muito.
Velório tem, luto acabou. As funerárias e os papa defuntos entraram em cena. Acopiara tem três funerárias e nenhum papa defunto, mas o mercado trouxe a concorrência e junto chegou o tal de Marketing O falecido é um produto que merece atenção.
Todas instituíram o carnê da morte ou vale defunto ou bolsa falecido. O cidadão vivo paga uma mensalidade de R$ 10, R$ 20 ou R$ 30 e assegura alguns direitos e sua cidadania de morto.
Chamou-me a atenção o conteúdo do kit: caixão popular, nada de luxo ou superluxo, aí tem taxa extra para frisos prateados e dourados e entalhamento, mortalha para homem (camisa grande e calça folgada) ou mulher (camisolão rosa ou azul), higiene pessoal como banho, unhas cortadas, barba feita (se for homem), cabelo penteado, calçado, um pouco de flores. Isto para o defunto. Para o velório: dois pacotes de bolachas, dois de macarrão e l kg de carne moída para sopa e 250 gramas (uma quarta) de café em pó. Isto para os urbanos e rurais até de 50 km da cidade. Para os da cidade tem ainda um balde de sopa, de cinco litros, para segurar os que estão pranteando o falecido.
Mas Acopiara ainda não tem capela mortuária ou salão para velórios. Falta pouco para que isso aconteça. Até sugeri que pedissem ao SENAC ou ao Fome Zero um curso de carpideira para que haja um pouco de choro. Já não se pranteia os mortos como antigamente. Choro com emoção forte, hoje, só dos familiares das vítimas das chacinas e de enchentes, nos grandes centros ou dos ganhadores e perdedores, nas Olimpíadas de Pequim, no Jornal Nacional.
Nas funerárias, há estórias inacreditáveis. Há poucos meses, uma família de Iguatu foi a Acopiara comprar um caixão para enterrar a perna amputada de uma senhora. Não queriam que ninguém de Iguatu soubesse. Mas queriam um caixote. Depois de ampla negociação, a perna veio do Iguatu e foi enterrada num caixão em Acopiara. Um mês depois, a senhora faleceu. A família voltou à Acopiara e comprou outro caixão e pediu que fosse providenciado o enterro. Acomodada numa noite no caixão, o empregado da funerária notou algo diferente, na hora do fechamento no dia seguinte. Foi discretamente informado de que a família fora a Acopiara resgatara o que restara da perna e a colocara dentro do caixão para que a falecida a levasse para a eternidade. É verdade.
Nos tempos chaplinianos, o velório tem de tudo. Não é só sopa, bolacha e café. Tem também televisão ligada, rádio de pilha, revista de fuxico e aquela que matou o guarda, sorvida em copinhos de plástico para espantar o sono. Tem também altos papos sobre as virtudes dos mortos, escassas ou caudalosas, ou e as glórias dos vivos. Há caras e bocas, flertes e olhares.