Março 2012
A gíria presente na obra de Eça de Queiroz II
Há pouco tempo escrevi sob o mesmo título artigo em que assinalava a gíria na obra de Eça de Queiroz, na edição de “A Correspondência de Fradique Mendes”, da L&PM Pocket, com apresentação, posfácio e notas de Fabio Bortolazzo Pinto, reimpressão de agosto de 2010. Carlos Fradique Mendes, criado por ele, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, surgiu em 1869. Em 1870, segue vivo com Ramalho Ortigão. Em 1888, Eça colocou biografia e correspondência em Fradique. Não viu o lançamento, pois faleceu antes. Eça nasceu. Em 25.11.1845 e morreu em 16.08.1900. De 1872 a 1874, com 22 anos, serviu em Havana, de 1874 a 1878, em Londres, de 1878 a 1900, em Paris.
Retomo a gíria na Obra de Eça de Queiroz agora em “O Primo Basílio”, lançado em 1878, no rastro do sucesso de o Crime de Padre Amaro (1875) e Cartas da Inglaterra” (1877) quando foi transferido para o consulado português em Bristol, na Inglaterra. A edição em que me baseei é a da FTD, de 1994, que está de acordo com a da Livraria Lello Ltda, de 1935, com notas de Elenir Aguilera de Barros.
Não quero dizer que Eça seja influenciado pela gíria, ou como se diz em Portugal pelo calão. Até admito que recorreu aqui e alhures à gíria pela sua ausência física de Portugal, pois desde 1872 quando foi para Havana, que viveu fora de Portugal. Mas tinha o domínio da língua padrão, da língua portuguesa, falada e escrita da época. O seu texto é muito rico, sem ser rebuscado e ininteligível. Pelo contrário é um texto de fácil percepção..
O livro é rico nas referências sobre autores, romancistas, músicos, compositores, canções populares, divindades Greco romanas, personagens bíblicas e principalmente francecismos ou galicismos e anglicismos, citados aos montes, o que facilita a compreensão do contexto.
Mas além de gírias há muitas palavras do português histórico e da língua morta.
Tive o cuidado de capturar as gírias que continuaram no tempo, sem mutações relevantes.
Sigo, neste texto, a própria ordem do livro, para facilitar a identificação: quebreira, cansaço, fraqueza, moleza após refeição; restolho, palha de plantas, piso; proseirão, falador, prosador; romanesca, romântica; frufru (do francês frou-frou) ruído produzido pelo roçar de saias; cuia, tufo de cabelos postiços; tique (do francês tic) sestro, mania; cuco, relógio; calembur (do francês calembour, jogo de palavras na significação mas semelhantes sons); pelintra, pilantra; parvo, bôbo, palerma; beleguim guarda; tipóia carruagem puxada a cavalo; bagatela qualquer coisa; abarrotar comer demais e ficar arrotando; cabeça; viborazinha, pessoa elétrica, irrequieta; cupê, tipo de carruagem; bife, elegante, bem vestid; escarlate, vermelho; dengueiro, dengoso; gaforinha, cabelo de negro ou mal penteado; gingão, pessoa grande; cavaqueira, reunião social para conversar, tocar música, tomar chá e comer guloseimas; tumba, pessoa que não fala; furar, abrir espaço na escala social; pequena, menina, moça; cera-mostache, cosmético para alisar e empastar o bigode; olhos repolhudos, olhos quebrados; tronco de árvore, pessoa forte, o Sebastiarrão; sebento, seboso; babar, apaixonar-se; degredo, exílio voluntário ou forçado; chique (do francês chic), lindo, da moda; isca seca, pessoa magra; fava torrada, pessoa magra; saca-rolhas, pessoa magra; piorrinha mulher de baixa estatura, miúda; bruá (do francês brouhaha), ruído confuso que se eleva da multidão; pupurri (do francês pot-pourri), seleção de músicas; neve, sorvete; macambúzio, tristonho, fechado, pensativo; debochado, descarado; perdido, sem jeito; falatório, muita conversa, intriga; beata, comportada, sem ser carola, recatada; passear os meus leites, fazer digestão; tripa velha, pessoa magra; mexericar intrigar; asno imbecil, ignorante; besta imbecil, ignorante; peralvilho atrevido, agressivo; choldra, povão, ralé; maroto, malandro; espalhafatona, espalhafatosa; cacifro, quarto dos baús; tó rola, “isso,sim”, “não me enganas”, reles, sem graça, atrasada, sem encantos; maroto pessoa astuta; sarcófago, depósito de coisas inúteis; redondinha, gordinha; patranha enganação; gajo, rapaz, moço; chazada, xícara de chá; caturra pessoa velha, sem graça; lanche (do inglês lunch); pequerrucha, pessoa de baixa estatura, miúda; tintlim, tilintar de moedas; deixar correr o marfim, deixar que as coisas aconteçam; trambolhozinho, mulher de baixa estatura e gordinha;safar-se, sumir, desaparecer; don juan, (do espanhol), sedutor, conquistador; lençóis de vinagre, bater numa pessoa e deixa-la com o corpo contuso; carradas de razão, coberto de razão; pechincha, presente barato; pingadeira, uma série de presentes, entregues espaçadamente; cardar, esperar; um ror, um monte, muito; ave noturna, pessoa da noite; deixando tudo ao deus dará, ao léu, abandonado; punha-se a panriar, a descansar, a zombar; ditinhos, piadinhas, tacões, sapatos; rapariguita, moça nova; metediço, intrometido; bufa! bufa!, ufa, ufa; estabanada, sem modos; janota, bem vestido, aprumadinho; engelhada, enrugada, muito velha; enxovia, prisão; tintim por tintim, nos mínimos detalhes; que ferro! que maçada!; sustanciazinha, comidinha; desembaraçar daquela estopada, livrar-se de uma situação ruim; caldeira de Pedro Botelho, o inferno; randevu (do francês rendez-vous, casa de tolerância), arrepelou-se, saiu de si, descontrolou-se.
Há também no livro um grande acervo de palavras e expressões remetidas à língua morta tais como: dormir nas montadas; lausperene; anediar; botinas de duraque; peitilhos, galgos, palrar, estanqueira, vórtice, lamecha, cocar, repas etc.;
O livro que reafirma a trajetória de Eça no realismo apresenta tipos com traços repulsivos e cômicos, acentuados na ironia do autor sobre a sociedade portuguesa.
(*) JB Serra e Gurgel (Acopiara), jornalista e escritor