Outubro 2017
Cearês
Quem pensa visitar o Ceará, ver de perto seu povo, sua cultura
é bom procurar conhecer sua linguagem, seu modo de falar que é
que nem o dos gaúchos e mineiros, bem diferente do resto do país.
Mesmo com as redes de televisão impondo uma linguagem, um so-
taque único, o cearense teima em falar à sua maneira. A TV Diário,
em Fortaleza, que tem como slogan “a TV que fala a língua povo”,
preparou um mini dicionário para ajudar quem é de fora a entender
melhor o que dizem os programas e telejornais da emissora. Na
avenida beira mar, um turista dá de cara com um bandido armado
e todo nervosa grita: -Não se bula nem faça mungango, passe a
grana. Até descobrir que ele quer que você fique parado não faça
movimento, pode ser tarde.
Acho que o pioneiro foi o historiador Raimundo Girão que em
1967 lançou o livro Vocabulário Popular Cearense, com mais de
três mil verbetes.
Lembro que nos anos 70, o médico Mário Mamede, na época
fazendo residência no Hospital de Base de Brasília, começou a coletar
palavras, frases, expressões bem cearenses que ele ia lembrado nas
horas de folga. Sua intenção era colocar num livro palavras como
Celular, que lá significa garrafa de cachaça de bolso, biloto, que é
botão de apertar; vá no rumo da venta, siga em frente; no tempo do
ronca, há muito tempo. O tempo passou, Mário deixou a verve de
lado virou médico,depois embrenhou-se na política.
Um outro cearense, João Bosco Serra e Gurgel, morando no Rio,
a capital da gíria, elaborou um dicionário com expressões cariocas,
Hoje, já na nona edição, o dicionário do JB Serra Gurgel abrange toda
a gíria falada no Brasil e nos países de língua portuguesa.
Mas foi mesmo outro cearense, o engenheiro Marcus Gadelha,
que por coincidência foi vizinho de Mário Mamede na avenida Pa-
dre Ibiapina, perto da praça São Sebastião, que elaborou o primeiro
Dicionário Cearês. Hoje já são muitos. O espírito de imitação está
em todas as áreas. Lembra quando inauguraram um bar chamado
New York, New York? Apareceu um cidadão e abriu ao lado o
London, London. Como se não bastasse, outro esperto abriu do
outro lado o Quixadá, Quixadá. Hoje em dia, dicionários são
feitos com linguajar piauiense, potiguar e por aí vai.
O dicionário do Marcus Gadelha, que hoje virou um livro
volumoso, desses que ficam em pé, tem um diferencial. As frases,
palavras são acompanhadas de histórias que, além da definição,
dão um melhor entendimento. A palavra Dedada ele explica
contando que Biel estava na festa com a namorada. No meio do
salão, ao som daquele bolero, passa um outro casal perto dele e
a namorada reclama: Biel, essa cara aí meteu o dedo na minha
bunda. Cheio de fúria, Biel vira-se e dá de cara com um elemento
de 1,80 de altura, bêbado e de cara feia. Biel pega a namorada e
sai dançando para o outro lado do salão, pensando com ele: ainda
bem que não foi em mim. Marcos escolheu uma outra histori-
nha para definir o ditado “Aí mente”. A Fenix Caixeiral lotada.
Show da Dóris Monteiro, que atuava no período pré-bossa-nova,
fazendo sucesso com Mocinho Bonito, Palhaçada, Dó Ré Mi,.
músicas do seu repertório. Luís Bolinha, que na época trabalhava
na rádio Iracema, subiu ao palco, interrompeu a cantora para
elogiar seus dotes profissionais e sua beleza física: - O que é que
você faz, nessa idade, para se manter tão bonita com essa voz
tão suave, tão jovem?
E a cantora, surpresa com a inconveniente interpelação res-
pondeu ao inoportuno entrevistador:
- Que é isso, sou jovem. Só tenho 57 anos.
E o Luiz Bolinha: “Aí Mente...”
O nosso modo de falar, como não poderia deixar de ser, é
tema na literatura popular, onde poetas como Daniel Fiuza marca
presença com esse cordel, que é um setilha em redondilha maior,
com rimas encadeadas, falando exatamente do linguajar cearense:
“Abirobado é maluco
Acochou, tá apertando!
Ande tonha! É transar
Aloprado e bem dotado
Altear, aumenta o som!
Impriquitado é o bom
Arre égua! É admirado.
Vive junto é amancebado
Arriou barro, cagou!
Arenga é provocação
Abraçando cê abarcou
Quem aporrinha irrita
Se arremedar imita
Deu a volta arrudiou.
Regador é aguador
Doente tá baleado
Baixinho é batoré
Chei dos paus, é embriagado!
Quem é doido tá biró
O idiota é bocoió
O sem sorte tá pebado.
Nervoso é aperreado
Bater fofo é dá furo
Bandola e um dos lados
Jogar no mato é monturo
Dá brecha mostra à calcinha
Piriquita é bacurinha
Maior breu é muito escuro.
(*) Wilson Ibiapina (Ibiapina) jornalista e diretor do Grupo Verdes Mares em Brasília.