Agosto 2009
Cearense anônimo, mas nem tanto
Quando o presidente Juscelino decidiu construir a capital do pas no planalto central, muitos cearenses se animaram com a oportunidade para mudar de vida. Pedreiros, carpinteiros, ajudantes de obra, agricultores, comerciantes, fotgrafos, profissionalmente de 64.314 mil candangos que trabalharam o contingente de .64.314 mil candangos que trabalharam febrilmente na construo da cidade.
A maioria sada do Nordeste, principalmente Cear, Maranho e Piau. De minha cidade, Ibiapina, ainda menino acompanhei a sada de nibus e caminhes. A fora jovem do interior do estado transportada em pau-de-arara, sem o menor conforto. Dias e dias de viagem em estradas esburacadas em busca do desconhecido. Deixaram com as famlias a esperana de um dia poder cham-las para morar na cidade que ainda nem existia.
Vi meu tio Osas saindo com os dois filhos mais velhos. Lembro tambm do dia em que voltou para pegar a famlia. Vestia cala cqui de brim e calava botas de canos longos, sujas de poeira, que ele dizia ser da obra. Quando cheguei aqui alguns anos depois ainda senti a poeira de Braslia, vermelha e fina, que o vento levantava em redemoinhos e espalhavam por toda parte.
A saga desses operrios em construo no foi fcil. Acomodaes precrias, trabalho diuturno, sem conforto, sem diverso.
O encarregado da construo, Israel Pinheiro disse um dia que a obra que deu mais trabalho foi a do Congresso Nacional. A sede do Poder Legislativo quase uma cidade. Cmara e Senado com seus blocos de 28 andares em forma de H tinham tantos operrios, que para transmitir as ordens foi instalado um sistema de alto falante. Depois das coordenadas e mensagens sobre turnos de trabalho, distribuio de tarefas, os engenheiros mandavam tocar msica clssica para diminuir o estresse, acalmar os nimos. Faltando poucos dias para a inaugurao, Israel Pinheiro entrou em pnico, com medo que a obra no ficasse pronta. Foi quando teve a idia de tirar a msica clssica e colocar no sistema de som o tico-tico no fub, de Zequinha de Abreu. A todo mundo passou a trabalhar no ritmo animado do chorinho e o Congresso foi inaugurado junto com os outros prdios.
O que mais atrapalhava a permanncia em Braslia era a Saudade do Cear, dos parentes que l ficaram. O jornalista Clemente Luz veio de Minas e ganhava a vida escrevendo cartas para as namoradas, noivas e esposas dos candangos. Arranjou uma mesa e um tamborete e ficava na Cidade livre, perto do mercado, anotando (e s vezes melhorando) o que eles lhe ditavam, reproduzindo o sentimento puro e verdadeiro daqueles homens iletrados. -"Mulher contava Clemente Luz- j sa do alojamento e agora estou morando Numa casa fiz com duzentas sacas de cimento". A mulher no pensou duas vezes. Vendeu tudo que tinha e se mandou para Braslia. Tamanha foi surpresa quando descobriu que a casa existia, s que de papelo, construda com 200 sacas de cimento vazias. Um barraco que lhe serviu de Abrigo, a ela e aos filhos, enquanto durou a obra.
Nos 50 anos da cidade, fala-se com justia em JK, no urbanista Lcio Costa, no gnio imortal de Oscar Niemeyer, no paisagista Burle Marx, em Israel Pinheiro, Bernardo Sayo e nos milhares de candangos, os verdadeiros heris dessa epopia. Quem so, quantos foram? No h registro dos nomes. Trabalhavam para empresas de construo que trocaram de dono, de cidade ou j no existem.
Passado meio sculo, uns tantos j morreram, outros voltaram para o Cear, mas alguns ainda esto por aqui, annimos, vivendo numa das 30 cidades satlites do DF, onde curtem as lembranas do tempo em que tudo comeou e do duro que deram para erguer a cidade monumento. .
Mas como soldados na guerra, viraram heris annimos. Seu feito de bravura que garantiu a vitria final, e hoje histria compartilhada apenas pelos familiares, os amigos mais ntimos. Como na guerra, o heri annimo que saiu do Cear e veio com toda a sua energia misturar seu suor a cimento, cal, pedra e tijolos, para transformar isso tudo em Braslia, lembrado hoje no principal logradouro da capital. Ao sacrifcio dos que trabalharam na construo.
Est l na Praa dos Trs Poderes, quase em frente ao Palcio do Planalto, a escultura em bronze do artista plstico Bruno Giorgi, altiva e esguia nos seus oito metros de altura. Ele a batizou de Guerreiros. O povo veio por trs e apelidou de Dois Candangos, numa homenagem simblica ao sacrifcio dos que trabalharam na construo.
Ela a lembrana permanente dos cearenses sem medo, que largaram seu cho rumo ao Planalto Central atendendo ao apelo de JK, sonhando com o Eldorado, a terra prometida onde jorrava leite e mel como no sonho de Dom Bosco. O cearense candango sem nome, mas que deixou em Braslia a marca de sua mo e de sua esperana.
(*) Wilsom Ibiapina (Ibiapina), jornalista